quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/21/2004 11:35:02 AM

ONDE EU ERREI?

Fabrício Carpinejar

Gravura de Richard Diebenkorn


Em um dia sem outro igual, um homem joga tudo para o ar, a família, a mulher, a casa, para depois voltar em paz. Não tão previsível, a mulher explode todo dia para não se acostumar com a paz. O homem não abandona tudo sozinho. Arruma um cúmplice, alguém para o elogiar e suportar a autocrítica. A mulher só depende de si porque assim a ensinaram e, quando parte, dificilmente retorna. "Onde eu errei?", essa é a pergunta banal depois de todo fim de relacionamento. Eu a faria do seguinte jeito: "onde eu acertei?" Conhecer as falhas não vai ajudar em nada o exame, pois somos tomados de complacência e não há como garantir o discernimento sobre o que representamos. Enfrenta-se uma intoxicação, o sacrifício da verdade pela vaidade. O orgulho toma o lugar do que seria de direito da dor. Perdoa-se a si para não perdoar o outro. Pior: tenta-se desmerecer o par que rompeu para que ele perca a credibilidade de contar teus erros, teu egoísmo, tua falta de vocação. A intimidade que tanto nos orgulhávamos será o motivo de pânico depois. Nossa facilidade em enxergar o estrago que fizeram com a gente não nos permite enxergar o mal que podemos ter feito. Fica-se irritado com que deixamos de ser mais do que daquilo que fomos. Toda a relação acaba quando a memória do que não aconteceu é maior do que o desejo. Quando se escolhe desacontecer para agradar as conveniências da mulher ou do marido, ajustando os amigos e os conhecidos a uma prévia lista de selecionados inofensivos, que não questionam, muito menos discordam. Podando-se o entorno e as circunstâncias, a transparência escapa. Nenhum homem, nenhuma mulher consegue ser doméstico em turno integral. Lembrar é falar, antes de escutar. Se escutássemos a recordação, ao invés de legendá-la ou rascunhar datas, poderíamos ter sinceridade com que passamos. Os casais se contentam com a lealdade, nunca chegando a atingir à fidelidade. Ensinaram-me que ser homem era um trabalho. Tinha que me devotar como a um emprego, que deveria aprender a dirigir cedo, a namorar com indiferença, a mijar nos muros, a responder à realidade com força e persuasão. Meus amigos perderam a virgindade em casas noturnas e saíram de lá como uma missão cumprida. Como uma circuncisão, a formalidade de um objetivo. Como uma manada que aprende a correr sem duvidar do corpo. Ensinaram-me que deveria amar também como um trabalho. Fazer família significava mais uma tarefa de ser homem. Eu rompi comigo, nunca mais regressei, nunca mais me revi. Existe a percepção de lembranças solteiras, restos e emoções que nunca foram casadas ao longo de uma vida a dois. Dói constatar que algo da individualidade não foi tocado, descoberto e permaneceu inatingível. Talvez nem mais saibamos como chegar a esse arquipélago desconhecido. Dói verificar que o que se levou do casamento foram dez quilos a mais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário