quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/22/2004 10:44:38 AM

O VENTO É O OSSO DO OCEANO

Fabrício Carpinejar




Gravura de Richard Diebenkorn


Eu me acostumei a pressentir, a imaginar o ato próximo, já me defendendo do que fazer e respondendo antecipadamente às pressões externa e interna. Eu me esvaziei do presente. Sou absolutamente tenso, pano esticado em corda. Posso até dizer que meu excesso de sensibilidade é algo próximo da insensibilidade. Fechei o cerco aos hábitos, tal as oliveiras que se davam as mãos no portão de casa, fazendo um entrelaçamento contínuo de sussurros e conspirações de chuvas. Elas falavam mais alto do que a ferrugem das trincas. O rumor de um vento dentro de suas hastes, como hélices de grito e espanto. Agora, com os pés na grama, a textura da terra ainda úmida e evaporando o excesso da noite, penso em recuar. Recuar não é voltar ao passado, mas dar ao passado uma chance de errar, de se desmentir. Não quero permanecer me explicando sem me ter perguntado antes. Nunca entendia como alguém que dizia "Vai com Deus", logo recebia de resposta "Fica com Deus". Sofria com a indecisão de Deus em ir e ficar. Não, não é minha vida que se tornou complexa. É que fui me simplificando tanto que qualquer corte não mais chama atenção pelo sangue. Troquei o sangue pelo orvalho. Ele seca antes mesmo de escorrer. Hoje tive um sonho em que abraçava minha mãe, já velha e bem menor do que eu, e ela me olhava de baixo, com mais profundidade do que poderia alcançar, ainda que em sonho. Eu a olhava de cima, como quem raspa uma concha de água dos seus olhos. Eu me conformei cedo. Deduzir não é pensar. Pensar requer uma falta de atenção intensa, um desequilíbrio periférico que nos equilibra. Deixei de conferir milagres. Qual milagre que espero que já não aconteceu em segredo? Minhas pálpebras se acostumaram a abrir como a rosca da térmica no primeiro grau. Três voltas em giro seco a exalar o vapor do leite achocolatado. Como um pintassilgo e seu naco de pão, espiava o que os colegas iam abrindo em suas merendeiras. Mastigava o que existia depois da boca. Desconheço o que empurrou minha cabeça a tomar um cuidado excessivo com as palavras. Estrela-do-mar que perde o veludo verde fosforescente para ser uma cópia do osso mais do que a concha. Como um barco, o osso do oceano não se enterra.

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