quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/6/2004 01:00:21 PM

SEGUNDA GAVETA, À ESQUERDA

Gravura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar


Eu lembro que curava minhas verrugas com folhas de figos. Eu lembro que andava na chuva para abaixar a cabeça. Eu lembro da conversa animada das enxadas nas frinchas das calçadas. Eu lembro que não precisava morder a aliança para testar seu ouro. Eu lembro que o cansaço me salvava da repetição. Eu lembro de manter um andar de distância entre minha carne e a terra. Eu lembro de atravessar as brasas em festa junina. Eu lembro de ter chegado na escola vestido de índio na data errada. Eu lembro de desmaiar em sala de aula. Eu lembro que fui voluntário na aplicação de vacina para me aproximar de uma menina. Eu lembro que a luz subia com a roldana do poço. Eu lembro que o ponteiro do relógio era um garfo se fazendo de faca. Eu lembro de um pássaro se apoiar em sua asa como uma muleta. Eu lembro que jurava segredos, esquecia e não tinha certeza se havia contado. Eu lembro de salvar meu irmão caçula da piscina. Eu lembro de me esperançar no fim da tarde. Eu lembro de meu medo dos dentes do túnel. Eu lembro da máquina de costura preta de minha avó e os pedais descontrolados. Eu lembro a primeira vez que quebrei noz com as mãos. Eu lembro de dispersar as ervas da horta. Eu lembro de sondar as feridas do tronco. Eu lembro do avental branco no gancho e das panelas na parede. Eu lembro do que ainda não me esqueceu.

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