quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/29/2004 10:25:34 AM

Uma das chamadas principais do jornal Zero Hora de hoje:

"Bala perdida mata grávida de nove meses

Jovem de 23 anos foi atingida durante tiroteio entre PMs e criminosos no Morro do Paula, em São Leopoldo"


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PARA CAUANA

Gravura de Hans Hofmann

Ana Lúcia Nejar e Fabrício Carpinejar


Cauana, não nos apresentamos. Não houve tempo bom. Não houve sol e entendimento. Não houve paz no sangue. Poderia esbarrar contigo no centro, rir de tuas travessuras no colo de tua mãe ou do cordão de isolamento que tu e teus irmãos fariam na calçada. Ou de teu nariz sujo e faceiro no inverno. Poderia te observar com ternura como quem descobre a infância num jeito diferente da boca. Poderia te ver correr para provocar sustos de risos. Quisera acompanhar tua alfabetização, tua mão miúda como letra de Bíblia, tua expressão marota recortando corações de cartolina para presentear a família em datas especiais. Gostaria que pudesses ver o quanto é tocante a vista da cidade de cima desse morro onde foste gerada. Queria mais. Que houvesse infra-estrutura para que tu aproveitasses cada segundo do dia brincando sem o receio de anoitecer. Que não houvesse lei do silêncio, batidas, tiroteios e a sombra de barro a rodear a tua casa. E que não fosse inviável andar pelas ruas a qualquer hora, para encontrar os parentes e rezar, como fez a tua mãe. Não provaste o sabor do leite, a água tranqüila da pedra, o gosto da uva, a amora, o miolo morno do pão. Não descobriste o significado do nome. Não conheceste os dentes, os joelhos estalando na cama e tomando alturas, as histórias herdadas dos avós. Não tiveste bonecas, uma vida para saber o que é sonho ou pressentimento, amor ou paixão, amizade e desentendimento. Não te deram nada. Nem um endereço ou um sentido. Uma chance ou uma profissão. Não chegaste a compreender a falta de teto no ventre, quando tudo estava arrumado para tua chegada. Não entendeste a própria morte, porque nunca chegaste a viver para ter medo dela.


Cauana, me perdoa pelo desabafo. Aquela bala atravessou mais do que o corpo de tua mãe, atravessou meu corpo em teu corpo, atravessou minha garganta. Fico imaginando que tua cesárea poderia ter sido antecipada para domingo, se houvesse leito. Já pensaste? Agora, estarias aconchegada no colo materno, ouvindo os planos para o Dia das Mães, aprendendo devagarinho a transformar o som da respiração em fala.


Cauana, hoje não me interessa de quem partiu aquele disparo no Morro do Paula. Nascer hoje parece tão difícil como permanecer vivo. Quero pedir desculpas a ti. A maior violência foi não teres, ao menos, a possibilidade de chorar.


Ana Lúcia Nejar é jornalista.

Fabrício Carpinejar é poeta.

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