quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/9/2004 10:54:02 AM

"PRONTO, QUEM É?"

Da série NINGUÉM É O MESMO, MESMO QUE SE REPITA

Gravura de Márcia Tiburi


Fabrício Carpinejar





Eu aprendi a ser pai observando minha mãe. Ela de noite costurava remendos de couro nas calças rasgadas do uniforme escolar. Eu já dormia. Nunca reclamou da falta de tempo, apesar de trabalhar como professora e defensora pública para sustentar a casa. Minha mãe me ensinou a ser sensível, mas cuidando para que não profissionalizasse a sensibilidade. Ser sensível é não estar preparado. Não estar preparado nos faz viver o que também não esperamos. A sobrancelha é um ouvido interrogativo. Eu lembro de ajudá-la a escolher grãos do feijão na bacia. Lembro que cuidei de minha mãe quando ficou doente. Lembro que ela não permitia que me humilhasse na dor, que me envaidecesse na alegria. Minha mãe fez com que eu não fosse machista nem de brincadeira, que eu fosse responsável por cada palavra. Se mordia uma palavra, teria que comer a fruta até o início da semente. Minha mãe me ensinou a ler o que não estava escrito, a escrever o que não estava lido. Ela foi uma cerração enquanto chama, uma chama enquanto sopro. Minha mãe parece que não me ensinou nada, porque não queria ensinar e sim desaparecer em mim. Ela me telefona para contar seus dias. Seus dias são narrações úmidas da noite em que estive em seu ventre. Minha mãe sobe em árvores, foi criada no interior, cresceu com o estribilho de talheres de um hotel e de um livro de registros onde aprendeu a desenhar a caligrafia copiando o nome dos hóspedes. Minha mãe é meu jeito de perdoar. Meu jeito de entender. Minha mão estendida. Inventa quando esquece. Não mente mesmo que seja para chamar a verdade. Minha mãe é tão diferente do que sou, que não me lembro com culpa. Não quis que eu fosse igual para que eu pudesse recordá-la. Minha mãe conversa durante os filmes. Leva muda de planta de qualquer lugar. Compadece com as raízes avulsas, ervas, casacos sem cadeira para sentar. Minha mãe come o que deixamos no prato. Não faz ninguém sobrar. Minha mãe escuta música clássica, só diminui o som para escutar as aves. Coleciona ninhos tombados das árvores como quem junta barbas do chão. Minha mãe crê em presépios e almoços de família. Pensa nos netos como pais dos filhos. Ainda se perturba com o noticiário. Liga para todos os filhos antes de dormir. Tem orgulho até do que não sou. Conta aos amigos a vida dos filhos e esquece da sua. Estende as roupas como quem reencontra o avental de sua mãe. Ama um amor sem aguardar retorno. Não guarda troco. Tem uma pinta ao lado da boca. Vai à missa, reza por nós. E espera que alguém reze por ela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário