quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/2/2004 10:30:51 PM

CINCO MARIAS EM MINAS GERAIS E PERNAMBUCO:


Jornal Hoje em Dia, Belo Horizonte, MG, Brasil, 2/5/2004


ENCONTRO DO POÉTICO COM O PROSAICO

Alécio Cunha

Repórter


Gaúcho de São Leopoldo, o poeta Fabrício Carpinejar é um dos principais destaques da cena poética brasileira contemporânea. Aos 31 anos, ele está lançando seu sexto livro, "Cinco Marias", publicado pela editora Bertrand Brasil, do Rio de Janeiro (RJ). Desde já um dos melhores livros de poesia publicados no Brasil nas últimas duas décadas, o novo trabalho de Carpinejar esbanja astúcia, rigor no trato com a linguagem, exímia sensibilidade e, sobretudo, abertura dialógica.


Não é uma simples reunião de poemas, embora os textos também possam ser lidos de maneira independente. "Cinco Marias", munido de um arsenal onde o poético encontra-se com o prosaico, é, de certo modo, um romance polifônico. Trata-se de um longo poema, formado pelas muitas vozes, femininas, diga-se de passagem, que narram um fato inusitado.


Carpinejar explora ao máximo, nesse livro, um paroxismo que insiste numa conexão com o surreal. As cinco fêmeas do título, uma mãe e quatro filhas, narram, aos poucos, um episódio que poderia muito bem ser incluído nas páginas de uma crônica policial. Ao final do livro, ele mesmo cria a dita história, em uma notícia falsa de jornal.


As cinco Marias enterraram o corpo do pai e esposo em um terreno baldio nos fundos de sua casa. Presas pela polícia, todas elas negam o fato, garantindo que apenas haviam sepultado a biblioteca paterna. Um laudo do Instituto Médico Legal aponta que a vítima havia falecido de morte natural. Então, quais seriam as razões da ocultação daquele cadáver? Seria um homem um livro?


É neste tênue limite entre a blague e a invenção que Carpinejar põe a funcionar seu firme senso inventivo. Todo o poema é uma tentativa de explicar (ou complicar ainda mais) a questão. Numa época em que a poesia brasileira atual é cada vez mais vitimada pelos excessos de um cerebralismo vazio e inócuo, uma poesia inteligente e comovente como a de Carpinejar veio para preencher lacunas e marcar época.


Foi assim com "As Solas do Sol", publicada pela Bertrand Brasil no início da década passada. Em seguida, Fabrício, filho do também poeta Carlos Nejar, trilhou seu próprio caminho apostando em metamorfoses de sua persona poética.


Autor `demite' Deus por justa causa


Em outro livro, "Terceira Sede", publicado pela editora Escrituras, de São Paulo (SP), o poeta Fabrício Carpinejar se auto-projeta na pele de um homem de 72 anos, suas fragilidades e medos travestidos paradoxalmente em força, potência, energia.

"Um Terno de Pássaros ao Sul", lançado pela mesma Escrituras, desafiou a ortodoxia da psicanálise freudiana, ao confeccionar um longo poema sem pausas sobre a figura paterna, quase um acerto de contas poéticas com o pai. Em "Biografia de uma Árvore", de 2001, também publicado pela Escrituras, Carpinejar demite Deus por justa causa, cria o que chama de Novíssimo Testamento e explora as tangências poéticas do extrato bíblico de maneira formidável.


No ano passado, a Companhia das Letras, de São Paulo (SP), lançou a antologia "Caixa de Sapatos", onde o autor revisita seus próprios livros e escolhe poemas embalados por afinidades estruturais e temáticas. O resultado, de altíssimo nível, serviu para chamar a atenção de vez para o trabalho ordenado e sistemático do poeta gaúcho, sem dúvida, o melhor de sua geração.


Poema longo com trama e suspense


As ousadias de Carpinejar não se esgotam em "Cinco Marias", longo poema de versos curtos, com enredo, trama e suspense. Tudo começa com a estranha e absurda ordem materna de enterrar a biblioteca. O falecido não aparece e fica como uma sombra rodando a superfície do livro, os interstícios das páginas. Dessa forma, entra em cena um diário de cinco vozes, sem pontuação teatral, onde o leitor terá de descobrir por conta própria quem está falando nos poemas. O segredo é prestar atenção nas minudências do temperamento de cada uma delas. Nesse jogo lúdico, os versos tornam-se pedras que vão se acumulando nas mãos até que todas sejam esclarecidas em um único arremesso, no caso, o surpreendente final do poema, irrevelável numa resenha.


A obra mexe o tempo inteiro com as aparências e expectativas dos leitores, que tornam-se cúmplices das intenções do autor. Fabrício Carpinejar parte do princípio de que, em toda fala, as pessoas buscam muito mais esconder alguma coisa do que realmente mostrar. Ou seja, um pensamento somente é escolhido para ocultar as verdadeiras intenções. É nesse jogo de esconde-esconde que Carpinejar convida os leitores para um compartilhar que também pode ser um contemplar.


Edição portuguesa, com certeza


"Cinco Marias" deve ser lançado em Portugal no segundo semestre pela Quasi Edições, dirigida pelo poeta e ensaísta valter hugo mãe (assim mesmo, com grafia em letras minúsculas), numa coleção que já lançou livros de Manoel de Barros e Caetano Veloso. Na Alemanha, alguns poemas de "Biografia de uma Árvore" foram traduzidos por ninguém menos do que Curt Meyer-Clason, o octogenário tradutor de obras do mineiro João Guimarães Rosa, entre elas "Grande Sertão:Veredas".


Quem assina o texto introdutório de "Cinco Mulheres" é a ficcionista Ana Miranda, autora de "Boca do Inferno" e "Desmundo", toda elogios ao trabalho único de Carpinejar. "A sensibilidade e a leveza de um poeta, um homem capaz de ver seus contrários em si, recolheram na vida de cinco marias, mães e filhas, todas as marias que somos, ou poderíamos ser. Maria como um substantivo comum. As marias profundas que ardem, ofegam, cavam o chão e enterram o saber e a memória em forma de homem, ou não, com o prazer da mentira e a ternura da violência familiar", escreve Ana.


Na visão de Ana Miranda, os versos de Fabrício são poemas líricos glosados num crime imaginário, ou não, o crime de viver sob a opressão que é a própria vida, que num instante se transforma em ruínas. "Mas essa decomposição da vida é feita de beleza, orvalho, sêmen, e todas as secreções da existência, um flos santorum das conspirações familiares e íntimas do acordo da traição: o enredo da lã. Ao final desse jogo de pedrinhas, nos resta a Poesia", complementa e finaliza Ana.


"Cinco Marias". De Fabrício Carpinejar. Editora Bertrand Brasil, 108 páginas, R$ 19,00.


CINCO POEMAS

De Fabrício Carpinejar


1


Os mortos envelhecem

na eternidade

Não os invejo

Tenho dentes para morder.


Diante do prado,

ardo imensa


2


Em casa, Deus era feminino.

O ciclo das mulheres se aproximava,

se arredondava. O varal coberto

de panos alvejados.

Senhas de cada uma à mostra,

lavadas, pontuais, severas.

Eu cheirava o quarto

cheio de si. A ferrugem de um mar

que recuava. Sem arrebentação.


3


Amadureci a covardia em sarcasmo.

Posso rir do sofrimento.

Mistérios existem para simular profundidade.

Sou rasa, fútil. Não reverencio a primavera,

a mais sádica das estações.

Desde a infância, ela floresce minha asma.


Posso adiar a morte,

nunca o nascimento.

É impossível cortar a semente.


4


Meu pai carecia

de medida ao vinho.

Segurava o cálice

pelas bordas.

Seu suor comprimia

álcool em minha testa.

Eu afastava seu beijo,

aquele beijo.


Não importava a safra,

poderia ser a melhor,

ela azedava em sua veia.


5


É na extravagância

que as crianças acertam,

comparando

a idade do pão

à idade da água.




Jornal do Commercio, Caderno G, Recife (PE), 20/4/04



Coluna Escrita


O "CARPINEJAR" DAS MARIAS

Schneider Carpeggiani



Fabrício Carpinejar tem o dom do desequilíbrio. Algo que, na poesia, é a maior virtude que alguém pode ter. O desequilíbrio, aliás, nas palavras do mesmo autor é quando, na idade adulta, "sobra ou falta amor". O mais novo livro desse jornalista e poeta chama-se Cinco Marias (Bertrand Brasil, 123 páginas, R$ 19) e nele Carpinejar exerce não somente sua arte de propositalmente cambalear nos excessos e nas ausências (dos sentimentos e das palavras), como o faz agora interpretando as citadas Marias.


As poesias de Cinco Marias são, portanto, pequenos alumbramentos de amor, traição, partida, obediência, tempo e tudo o que vive e jaz entre o nascer e o se perceber nascido.


A metáfora da Maria, que na língua portuguesa é muitas vezes interpretada como a síntese de todas as mulheres em uma só entidade, surge no livro justamente para dar um efeito contrário: o de multiplicar as identidades das mulheres cujo nome pouco importa. Na maior parte dos versos, aliás, a presença da "autora maria" no escritor não é mostrada por meio de pronomes de gêneros, mas sim pela maneira como ele escreve, - para baixo: "O homem escreve como quem grita/A mulher escreve para baixo, em prece", explica ele no mesmo livro.


As relações familiares dessas personagens, invisíveis segundo o autor, são construídas sutilmente por meio de pistas sobre o que cada uma delas viveu e a maneira como cada uma se percebe no ambiente estranho a ela: "Viver requer a disciplina de ser invisível/ Todos querem aparecer./ O mundo não é feito sob minha medida/ Nada envelhece sem alguma violência/ Nada altera a raiva com que nasci."


Carpinejar, nome quase verbo, é um dos mais premiados e elogiados escritores da nova geração de poetas brasileiros. Autor de As Solas do Sol, Um Terno de Pássaros ao Sul, Biografia de uma Árvore, ele já publicou até uma antologia, Caixa de Sapatos, lançada no ano passado, ignorando o preconceito de que jovens não possam reunir e publicar seus melhores textos.

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