quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/7/2004 09:34:58 AM

SEM VOCABULÁRIO PARA ME DEFENDER

Gravura de Márcia Tiburi


Fabrício Carpinejar


Eu tomei o táxi como quem entra em um confessionário. O cheiro de velas e cera. Um santinho de Expedito e um terço no espelho. O motorista não me olhou direto, ficou de lado como um padre que escuta. Uma voz de canto. Eu apenas pensava o que poderia ter dito para ela, como sempre. O que não disse e faltou dizer. Repetir como as lembranças deveriam ter sido. Como se falar fosse me absolver de algum jeito. Não é que deixamos de sonhar, nos acostumamos com o sonho e tudo se assemelha a uma insônia mesmo quando a gente dorme. O taxista Fortes, 71 anos, há 20 dirigindo pelas ruas de Canoas, disse, sem lógica, sem licença: "estou escrevendo o diário do mundo, desde que o homem não surgiu até o momento em que ele pensa que pode surgir". Meu ouvido entortou como um garfo. Fortes mostrava uma serenidade de eucaliptos, uma inteligência de ervas. Cada passageiro exigia uma espécie de chá de acordo com o desconforto. Ele foi seguindo pelo lado direito da estrada, na velocidade de seus óculos. "Fiz cinco cadernos, são bobageiras, tenho apenas vocabulário para atacar, não tenho vocabulário para me defender." Não mudava o curso do rosto. Reto como o volante. "Eu não vou publicar. A vida é ilusionismo, inciência, acreditamos que o melhor está chegando, o melhor é quando não precisamos esperar". Nunca tinha me visto, como um alfabeto em outro idioma. "Resta a fantasia, prazer, amores", repetia essa frase várias vezes, em reza, para recomeçar o assunto. Eu explicava meu endereço e ele se esvaziava: "não importa a religião, importa a fé de quem reza. Eu não acredito em Deus, mas em santos. Os santos foram homens e mulheres e nos entendem. Não chegaremos a nenhum lugar que não tenho sido sonhado antes".

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