quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/6/2004 09:17:51 AM

NÃO HÁ COMO ESCONDER O FOGO

Da série MINHA INFÂNCIA NÃO ATRAVESSA A RUA SOZINHA


É bom não saber o que nos pertence, assim guardamos melhor. Jovem, ficava envergonhado ao me comover. Velho, eu me envergonho daquilo que não mais me emociona. Tudo muda sem passar. Eu demoro em meus pés como quem deixa um amor inacabado. Tenho simpatia por tudo o que não existe. Eu acredito que alguém vai me chamar e vou virar e ser surpreendido por um livro antigo. Remendava livros com pedaços de pano. Tentava roubar carambolas de uma vizinha má. Ela não nos deixava chegar perto da árvore porque soltava o cão. O cão babava, não latia. Assustava pela falta de latido. Normal não era. Um dia a velha do cão ganhou a amizade de minha mãe. Minha mãe recebeu uma cesta de carambolas que não podia roubar. Nunca entendi a vida. Não entender a vida é perceber que a maldade tem limite, a generosidade não. Ninguém soletra palavrão. Não dormia mais de uma noite na mesma palavra. O mosquito suga o sangue como se fosse a própria noite. Meu irmão não me deixava ler de noite. Queria a luz apagada. Eu coloquei a obra completa de Drummond em cima do abajur para fazer lanterna. Cochilei. Acordei com o pai gritando: - o Drummond pegou fogo, o Drummond pegou fogo. Minha irmã despejou uma escrivaninha de água no abajur. A obra autografada dizia: "falta uma palavra a tirar da insônia".

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