quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/1/2004 09:37:07 AM

Jornal Zero Hora, Cultura, POA (RS), 1º/5/04 Edição nº 14132


QUINTANA NÃO SE AUSENTAVA DO POEMA

Poeta analisa a obra de outro poeta e conclui: Mario Quintana concentrava um poder de síntese fora do comum e não precisava provar que fazia poesia

FABRÍCIO CARPINEJAR/ Poeta e jornalista




Duas vezes Quintana: o poeta sempre foi a estrada, nunca o destino

Foto(s): Dulce Helfer, Arquivo Pessoal/ZH


Todo autor deve ser odiado um pouco. Não há amor que não tenha que ser provocado pelo ódio. Pela curiosidade do ódio, não pela maldade do ódio. Eu amei Quintana, depois odiei para amá-lo ainda mais. Eu me perguntava: será que ele é mesmo um grande autor como o Rio Grande do Sul costuma dizer? Por que o Brasil não o consagra entre as mais altas vozes da língua portuguesa? Por que sua popularidade não acompanhou a aceitação crítica no país? Será que o Estado não transferiu seu complexo de inferioridade e superioridade para seu nome? Quintana fingia que não me ouvia, com a concha das mãos no ouvido. A concha das mãos no ouvido era seus óculos de escutar. Durante anos, essas perguntas me atormentavam. Até que não descobri nada. E não descobrir nada é começar a acreditar. A força da poesia de Quintana é sua falta de ambição, seu descompromisso, seus arrebatamentos provisórios e tão atuais. Ele não encadernava a vida, muito menos o livro. Ele é um estado de graça, muito além do marulhar da tinta.


Dez anos de morte de Mario Quintana (e vésperas de seu centenário de nascimento, a ocorrer em 2006). Mas quantos anos há em uma morte? "Deus transcende de Deus...". Não me arrisco a contar. A terra não tem idade. O corpo é terra antecipada. Autor de cerca de 30 livros entre poesia, prosa, crônicas e infantis, Quintana nunca chegou a ser Manuel Bandeira. Não chegou a ser Drummond. E não era para ser! Porque ele chegou nele mesmo. Quintana ficou no meio do caminho dos outros autores para ser a estrada, nunca um destino. Não é um endereço, porém a própria mensagem. Basta abrir a página 3 de Baú dos Espantos. Põe um papel carbono ali e se terá a imagem exata de um homem se levantando. O poema Matinal é assim: "O tigre da manhã espreita pelas venezianas./ O vento fareja tudo./ No cais, os guindastes - domesticados dinossauros -/ erguem a carga do dia." O poeta concentra um poder de síntese fora do comum. Suas metáforas desdenham da literatura para desenhar com lápis de cor. Nesse poema, a luz listrada que entra pela janela torna-se tigre, acontecendo uma ameaça do ar frio ao quarto abafado e quente pelas cobertas. O vento persegue, treme de fome a respiração. E os dinossauros do porto do Guaíba erguem o peso das cargas. Explicar o que ele diz chega a ser um crime. Quando o poema ultrapassou a explicação, ele é corpo.


Drummond tinha um humor poético que confessava e agredia. Quintana confessava para justamente acalmar a briga. Se Drummond mostrou a distorção pela multiplicidade psicológica, Quintana procurava harmonizar e reunir os cacos da vidraça. Drummond é desconfiado, de olhar oblíquo. Quintana é debochado, de olhar confiante. Drummond é longo como um vício. Quintana é breve como uma virtude. Drummond se mostrou engajado nas questões urbanas e urgentes de sua época. Quintana procurou não ser do seu tempo, e sim do seu lugar. Drummond traz o sentimento de despoder biográfico. Quintana se articula no sentimento de posse do eu, da vaidade generosa, que se reparte e não se economiza. O primeiro duvida do espelho, o segundo duvida de quem se vê no espelho. Drummond se ausentava do poema, tal velório. Quintana não se ausentava do poema, tal festa de aniversário. Se Drummond mostrou o embate entre Itabira, sua cidade natal, com as capitais que viveu, expressando a retração do homem simples e seu desconforto metafísico na metrópole, Quintana achou sua cidade natal, Alegrete, em Porto Alegre. Ele desenterrou Alegrete na capital gaúcha, apresentando um recolhimento interior e apaziguador pelos becos e sobrados, pelas ruas ainda cicatrizando as linhas do bonde. Não houve conflito entre o alto e baixo, ruínas de ventre. Sua cidade residia nos esconderijos atemporais, nos desvãos, nas casas antigas. Porto Alegre bastou-lhe como uma maquete ancestral, um rascunho de mapa. Um impulso para recuar e se destrançar nos labirintos escuros.


Quintana é um falso romântico, um falso simbolista, apesar dos sonetos de A Rua dos Cataventos. Lê Casimiro de Abreu engolindo e abafando a risada. A risada é sua rima. Aparentemente ingênuo, revela a simpática discordância entre ele e o mundo, entre a leitura e as histórias contadas. Oferece uma seriedade cômica. Faz de conta que está no passado para corresponder de algum modo com o presente. O cotidiano é seu assunto preferido, desde que seja a lembrança do cotidiano. Preocupa-se com a pré-história dos costumes. Tal Manuel Bandeira, troça do naturalismo a favor da naturalidade. Só que Bandeira é samba, Quintana é chorinho. Transforma a realidade em uma consciência de fábula. Não desejava a realidade, mas captar o drama ainda quando ele é pensamento. Ultrapassou a alcunha de frasista: vinha a representar o papel de filósofo do trivial. Seus aforismos funcionam como uma rasteira da percepção. Derruba a leitura para não mais cair. O poema acaba para recomeçar. Tinha o talento de não deixar dúvidas, de encerrar a conversa com um verso sábio, de pagar a conta. Poder-ia-se compor um dicionário de suas máximas. Soube enxergar que o cavalo não perde a nobreza, que o arroio é um rio-guri, que viver é um brinquedo. Se o poema se traduz em "um gole de água bebido no escuro", a sede em Quintana é clara. Não busca a decifração, mas a clareza do chiste. Comunica a intenção mais do que a palavra. Pois uma piada não compreendida é um insulto, um poema não compreendido é uma piada. Utiliza uma franqueza solta e espontânea, como se a verdade fosse pesada demais para se carregar sozinho. De outro lado, Drummond tirou proveito de sua incapacidade de ser espontâneo.


A verdade simplifica, a mentira enlouquece. Quintana enlouquecia a verdade dentro da mentira. Um dos seus equivalentes e alma gêmea é o poeta português Antonio Gedeão (ambos nasceram em 1906, morreram quase no mesmo ano e foram autodidatas). Gedeão tem igual soltura e fineza de espírito crítico, um arruaceiro elegante, provocativo e límpido, puro como água de bica, adepto das conversas de rua e de algo como um individualismo impessoal. "Até no sofrimento é preciso ter sorte" caberia bem na boca de Quintana, que costumava dizer que autodidata resumia um ignorante por conta própria (A Vaca e o Hipogrifo). A autocrítica, ao invés de provocar pena, amplia a estima. Quem é suficientemente seguro de si permite-se a brincadeira. Quintana é uma espécie de poeta não-praticante. Professou a poesia fora da igreja. Não precisava provar que fazia poesia. Seu ateísmo preservava Deus de Deus.

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