quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/15/2006 11:54:43 PM

O ESTADO DE SÃO PAULO, Caderno 2, Página 5, Domingo (15/1/2006)



A MULHER FEIA, ESTRELA DO HUMOR E DO CRUEL

Claudia Tajes faz rir em sátira da heroína que nunca terá um final feliz



Fabrício Carpinejar*

ESPECIAL PARA O ESTADO


O título gruda no ouvido como letra de axé. Mas no bom sentido. É também nonsense, divertido e surpreendente, Campos de Carvalho (de A Lua Vem da Ásia e O Púcaro Búlgaro) iria gostar.


A Vida Sexual da Mulher Feia já provocou gafes em algumas livrarias. Algumas pensaram que era auto-ajuda, um manual prático para as mulheres pouco abençoadas fisicamente. Outras acreditaram que se tratava de uma biografia. Difícil conciliar a estante biográfica com a fotografia de Claudia Tajes, publicitária gaúcha, bela morena de 42 anos e autora de outros quatro livros de ficção, Dez quase Amores, Dores, Amores e Assemelhados, As Pernas de Úrsula e Vida Dura.


Confusão por confusão, o livro vendeu sua primeira tiragem em semanas e já alcançou a marca de 15 mil exemplares. Mérito para a qualidade da ficção, que traz - em primeira pessoa - as agruras de Jucianara, uma mulher, diga-se, literalmente feia. É uma sátira ao romance de formação, seguindo a trilha de sucessos franceses tal Como me Tornei Estúpido, de Martin Page (que conta a história de um jovem que não consegue adquirir nenhum vício, muito menos se matar) e Mamíferos, de Pierre Merot (que flagra as mazelas de um tio fracassado diante da família). Dois parâmetros brasileiros de sua escrita ágil, fluente e leve é Fernando Sabino, da primeira safra como O Grande Mentecapto, e Luis Fernando Verissimo, numa versão Maitena.


Claudia Tajes tem um humor coloquial, pop e acachapante. A força está nos comentários espirituosos das cenas de humilhação de Jucianara, que já começa torta a vida no cartório. 'Nas vezes em que reclamei com a minha mãe por me chamar assim, ela respondeu: - Não poderia haver nome que combinasse mais com você'. É inviável não rir à toa e alto durante a leitura, como se houvesse um megafone embutido na garganta. Não se trata da risada sádica, que segrega as formosas das horríveis e aponta o dedo para torturar. Tajes alcança a proeza da risada generosa e solidária, imbuída da reflexão e do combate aos condicionamentos.

Apresenta um viés de conversa séria em um fundo cômico. Até se assemelha a um guia de etiqueta e dicas de revistas femininas - porém no tom de paródia. Os ensinamentos e as ilustrações reproduzem o hábito de privilegiar as más notícias. Até porque a boa notícia sempre é contada rapidamente. Por sua vez, a má notícia é lenta e cinematográfica.


Em A Vida Sexual da Mulher Feia, o trágico se torna patético e ganha ibope de carisma. Da forma como a trajetória é pontuada, acompanhada de uma pedagogia da resistência, evoca o Big Brother.A autora-narradora tem um quê de Pedro Bial, abrindo caminho para a pobretona ganhar o prêmio.


Nenhuma mulher ou homem ficará imune à insegurança da personagem. Afinal, quanto mais se olha no espelho, mais imperfeições aparecem, independente se o tamanho é P ou G. Cada capítulo do livro, em um crescente, acaba se transformando em provador de roupa insuportavelmente apertado e estreito.


Alheio à loteria genética, qualquer um se imaginará nas saias justas, seja perante o esforço de não dançar sozinha em uma balada, seja no papel que sobra de confidente. Tajes cria uma protagonista sem rosto, não define qual é o motivo da fealdade, não esmiúça descrições físicas, não impõe uma caracterização isolada.


No máximo, sabe-se que Jucianara é gorda e só. O recurso facilita a identificação ampla e abrangente do público.Esta é a principal virtude do livro: não se propagar como um conto de fadas às avessas. (Aviso de antemão:) O final feliz, com um príncipe encantado, não acontecerá sob hipótese alguma. Uma mulher feia não tem tempo para as distrações. Vai se esforçar o dobro para se considerar normal. E não mudará de condição, mesmo nas mãos de Pitanguy. Já que a mulher feia não é uma aparência, como explica Tajes, é um 'estado de espírito'.


Ju, como é conhecida para disfarçar seu batismo, goza de uma autocrítica impagável. Não perde um momento de se indispor à ditadura da magreza. Apresenta suas fases com requintes de crueldade. Como é a própria que se goza, não fica politicamente incorreto. Com uma crueza de consultório de terapeuta, é possível acompanhar desde o primeiro beijo, passando pela primeira transa e primeiro abandono até as relações maduras e - nem por isso - estáveis.


Suas aventuras amorosas começam com um colega do terceiro ano, Marcos, o único que parava para conversar.A transa rápida ainda era custeada pela divisão de um pacote de balas de jujuba. 'Mulheres costumam esconder sua primeira vez no sexo.Com as mulheres feias a tendência é acontecer o mesmo, com uma diferença: no caso delas, é o deflorador quem prefere evitar a divulgação dos fatos'. O histórico afetivo ainda inclui relacionamentos, entre outros, com um cobrador, um pintor frustrado e um porteiro.


No formato de teses, a escritora define e exemplifica os horrores vividos por Jucianara, que sempre sofrerá a companhia de eufemismos como 'prestativa, simpática, confiável, boa-praça, exemplar e grande companheira'.


O único pecado (venial) da novela é a quebra de ritmo no final. Tajes parece que apressou o passo, arrematou o que merecia um maior fôlego, lentidão e cuidado. O livro ficou assimétrico, as tensões envolventes e didáticas do início e do meio não encontram um desaguadouro merecido ao término. O sucesso de Ju como locutora na rádio Baticum FM e a inclusão de cartas dos leitores esfriam o conjunto, porém não sacrificam a revelação da autora como uma das mais bem-humoradas e peculiares ficcionistas brasileiras.


A Vida Sexual da Mulher Feia refaz a Receita de Mulher, do poeta Vinicius de Moraes: 'As muito bonitas que me perdoem, m as feiúra é fundamental.'


* Fabrício Carpinejar é jornalista e poeta, autor entre outros, de Como no Céu/Livro de Visitas (Bertrand Brasil, 2005)

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