quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

9/6/2004 08:54:18 AM

MINHA FILHA


Fabrício Carpinejar


Não sei quando a criança pára de enxergar anjos ou de cumprimentá-los. Se acontece aos três anos, por uma obediência natural ao esquecimento, ou só depois? Para não sofrer com os acidentes do invisível, já que é demasiado sofrer com o que acontece no visível. Essa é uma resposta que te devo. Ficamos juntos no final de semana, alguns dias do mês, as férias, e fico reparando em teus gestos para ver se algo de meu temperamento está contigo. Eu não te eduquei, não te corrigi em seqüência, sou como um pai que vai voltar tarde. E tudo o que tento ensinar não tem uma segunda ou uma terça para permanecer. A gente se esquece de continuar. Nossa convivência é feita de inícios, com a segurança de que estou ali e tu estás ali, como duas crianças regendo uma tempestade. Te aproximas de mim como quem recorre a um objeto antigo. Um objeto antigo que recorda a casa que não teve. É assim um pouco como me sinto. Não descobri a forma ideal de convivência, muito menos o que gritar para chamar tua atenção. O tom de voz alto ou baixo? O riso contido ou desavergonhado? Se choro na frente ou murmuro dor de rezar? Na hora em que me beijas, viras o rosto lentamente, para escapar da barba. Herdaste até o medo da barba de tua mãe. Herdaste todos os medos dela com lealdade. Não herdaste meu medo de não ser compreendido. E não posso me defender dos ataques dela, do que ela possa dizer de mim. Porque defender é atacar. E atacar ela é destruir a casa em que moras, a vida que tens, o mundo que desde sempre reverencias como teu e indivisível. Não há como pedir que entendas a verdade. A verdade é passar fome ou frio na linguagem. Não arrisco, passo de madrugada para conferir se estás coberta. A paternidade tem um preço, mas não pode ser descontada nos filhos. Quando brinco com as crianças e faço palhaçada, elas se divertem, menos tu, encabulada pela maneira como converso de igual para igual. Menos tu, que desvias lentamente o rosto para o lado, como que se desculpando por mim: 'meu pai é louco'. Não aceitas meu amor, porque o entendes pela metade. Não aceitas que meu amor por ti não tenha amado tua mãe. Eu traí a família que querias. O que não chegou a ser dito existe, o que foi dito na hora errada existe, o que não me quis dizer existe. Vive-se as palavras do jeito que é permitido viver. Eu não sei o que levavas na mochila na escola. Eu não corrigi teus temas. Não te repreendi, não me desaprendi por inteiro. Queria cortar teu cabelo agora, não deixas para permanecer igual ao da tua mãe, mesmo não tendo nada a ver um cabelo com o outro. Talvez eu não tenha pensado em muita coisa para te dizer e mesmo assim disse. Eu não posso viver a tua superfície sem receber notícias de teu fundo. Eu não insisti para que comesse frutas ou tomasse água. Eu queria te contar uma porção de noites que não visitei teus olhos, que não compareci em teus ouvidos, que não controlei tua febre. Nosso problema não é a falta de espaço, é o excesso de espaço. Amar é mais do que ver, é suportar o que não pode ser visto. Põe o casaco. Ninguém usa as mãos pelas mãos; há pernas nas mãos, pés nas mãos, olhos nas mãos. As coisas que não aconteceram não fracassaram, escolheram um outro passado. Não escolhemos o nosso futuro, escolhemos o nosso passado, só isso. Cobras que eu não permaneci. E os teus primeiros dois anos que cuidei sozinho de ti não recordas, em que controlava tuas refeições, lavava tuas fraldas (descartáveis eram muito caras), te levava ao médico, brincava na praça, acompanhava adaptação na escolinha. Eras tão agarrada que meu pescoço nunca mais usou manta. Não quero cobrar nada. Estou falando adulto, porque aqui a criança sou eu. Tuas perguntas não me assustam, o que me assusta é tua falta de perguntas. Estarei te devendo sempre alguma explicação. Como a do anjo, que não pára de chegar perto de ti, e que não enxergas, por obediência natural ao esquecimento.

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