Fabrício Carpinejar


A prosa desliza voluntariosa para ação, sem permeios ou piruetas. Não há gente psicanalisada ou a atmosfera intimista de querer entender e de se fazer entender aos outros. "Tinha me acontecido de ultrapassar aquele indíviduo que eu mecanicamente formara para os outros." Noll lida com uma subjetividade objetiva, ficando livre para surpreender. Ultrapassa o romance de idéias em nome de uma encenação em tempo real de desejos, inquietações, ardências, capaz de atingir o êxtase do grito e do gemido e consagrar o instante para não coagulá-lo em pensamento. Ele interpreta a vida, não a defende ou a acusa. Executa parágrafos longos e descritivos, uma música estática, que transporta o leitor pela sua força e intensidade. Como a paisagem onírica incitada pelas composições de Philip Glass, utiliza consecutivas repetições de modo que a entrada de um novo acorde enfatiza o corpo e a textura do som, tornando-se ainda mais revelador. João Gilberto Noll reduz a música aos seus elementos primordiais para acentuar as diferenças. Primitivismo e magia, em que o ritmo é mais importante do que o tema e resgata a sublimação da experiência com o mundo.
Em Lorde, uma mudança significativa acontece na trajetória de Noll: uma paz que não existia nos enredos nervosos do romancista. Uma serenidade difícil de se encontrar na prosa contemporânea. As figuras de Noll continuam a não ter noção do destino, do desembarque. São aparições em linguagem viva, com as pupilas dilatadas. Não sabem onde vão terminar e dão o mesmo valor aos fantasmas do que às novas amizades. A conversa de fora é uma conversa por dentro, onde o protagonista mistura apelos externos com internos, negocia lembranças, trafica sensações, vacila em impressões tardias. Mas a figura de Lorde tem uma característica que o diferencia do ator de Harmada ou dos viajantes de Hotel Atlântico e Canoas e Marolas: conta com um lugar para voltar, Porto Alegre. Antes, a cosmogonia de Noll não desfrutava de um endereço, de um regresso possível. Agora, isso muda até o tom da fábula, serena a dicção, porque os laços criados com uma origem asseguram uma espécie de conforto espiritual e de funções sociais demarcáveis.
Nem mais os girassóis elétricos de Van Gogh, muito menos a cor explosiva das banhistas de Cézanne. Noll pára diante do vaso de flores calmas e esbatidas de Gauguin. Isso não significa uma mudança de estilo, porém a maturidade de um olhar, que passou por provas e provações e adquiriu o seu direito de celebração. Noll completa sua proposta de "desativar o homem", anunciada em Canoas e Marolas, e o cumpre alcançando a calmaria, depois de desafiar os métodos, as convenções sociais, as opções sexuais pré-determinadas (como ao trazer a homoafetividade à tona sem um engajamento que o justifique ou peça licença).
A forma literária que possibilita esse acesso ao homem dentro do lobo é curiosamente encontrada no abandono do hiperrealismo, em clara retração do campo lingüístico. Noll disse que "todo livro narra a história de uma fé". A fé já é o milagre.
(Publicado no site de Sara Fazib , na seção "Cultura Geral")
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