quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

9/16/2006 10:49:42 AM

PAREI DE FUMAR

Para Mariana e Vicente, meus filhos

Para meu paizinho, que está fazendo cirurgia hoje


Pintura de Fernando Botero


Fabrício Carpinejar





Decidi parar de fumar, a partir do meio-dia de sábado (16/9). Ao lado das crônicas, começo a escrever o diário do ex-fumante. Recuso chicletes, remédios e tratamento. Tenho um pacote cheio na gaveta. Tudo leva a crer que não conseguirei. Sou uma estatística nula. Alheio às probabilidades, paro de fumar.


Não sei o que farei com a vida que vai sobrar, não tenho a mínima idéia de como fingirei que estou acompanhado sem a fumaça. Como esconder minha timidez? O vício sempre foi minha virtude para disfarçar.


O cigarro é minha bengala de velho. A boca tropeça sem ele. O cigarro é meu aparelho de dentes. Trinquei minha adolescência nele. O cigarro é minha barba ruiva. A gola de minha barba. O cigarro foi minha primeira desobediência. Minha ansiedade de morder. Minha pressa em cuspir. Meu medo de beijar.


Eu vou sentir falta da solidariedade dos fumantes. Eu vou sentir falta da pausa ensolarada de brasa depois do almoço. Eu vou sentir falta da coceira da luz diante da janela. Eu vou sentir falta de fumar nas baladas quando a música não ajudava e a bebida fazia efeito. Eu vou sentir falta de fumar enquanto caminhava - o cigarro acelerava chegar. Eu vou sentir falta de fumar quando suportava atrasos. Eu vou sentir falta de fumar para controlar a tensão das palestras. Eu vou sentir falta de procurar no lixo os telefones anotados na carteira. Eu vou sentir falta da raiva dos ex-fumantes. Eu vou sentir falta porque o cigarro me tornava misterioso. Eu vou sentir falta dos segredos que ouvia fazendo de conta que fumava. Triste me desfazer dos meus doze isqueiros engraçados - acendia o cigarro pelo barulho deles. Os cinzeiros permanecerão em casa esperando visitas. Os cigarros adormecem espiralados, como túmulos de flores.


Eu me senti homem com cigarro. Me sentirei ainda mais homem sem ele.


Fumo desde os 16 anos. Mais da metade de minha vida fumando. E escrevendo fumando. Fumando escrevendo. Não suspirava, tragava. Confundirei a família ao acordar, não haverá minha tosse preparando café. Se meu texto piorar, terei que lidar com a hipótese de que o talento vinha da nicotina.


Decidi parar de fumar. Recebi uma mensagem emocionada da Mariana, minha filha. É ridículo parar de fumar porque a filha pede, mas é mais ridículo continuar fumando depois que ela pediu.


Minha filha não herdará minha mentira. Não herdará minha morte. Não herdará minha covardia. Herdará minha palavra.


From: mariananejar

To: carpinejar

Sent: Tuesday, September 05, 2006 7:03 PM

Subject: Sem assunto



Pai


Estou te escrevendo com o objetivo de fazer você parar de fumar. Por incrível que pareça, é esse o objetivo.


Pensa só, cada pacote de cigarro que você adquirir possui uma mensagem localizada no verso dele, feita pelo Ministério da Saúde. Mas nenhum fumante dá bola para essa mensagem. Nenhum. Mas o Ministério não se preocupa particularmente com ninguém. Eu me preocupo.


São fabricados milhões de pacotes de cigarro por dia. Cada um deles tem uma mensagem do Ministério da Saúde. Cada um dos pacotes tem esse tipo de mensagem, diversificadas, mas todas com a mesma intenção.


Mensagens de uma filha não são tão comuns quanto uma advertência do Ministério da Saúde. Eu não estou escrevendo para poder fabricar legalmente um pacote de cigarro. E não estou te escrevendo por pura obrigação de Ministério.


Meu objetivo não é deixá-lo brabo, nem impaciente.


Há muitos anos que você me prometeu que não fumaria mais. Prometeu, claramente, diante da ingenuidade infantil. Minha satisfação se passou, e o cumprimento ficou escondido atrás da fumaça. O cumprir, gasosamente, se foi com a fumaça, com a fotossíntese. E o Fabrício continuou aqui, com a mesma promessa e uma cara de quem quer convencer que um dia vai abandonar o fumo, mas não convence NINGUÉM.


A vida não recompensa o fumante. E o cigarro não recompensa a vida.



Pelo menos pensa nisso, pai, e saiba que não pretendo estragar seu dia, mas apenas consertar todos os seus dias a partir de agora.


Se você morrer muito cedo, sentirei muita falta.


E de tanto que sentirei falta, meu amor me convenceu de escrever, talvez inutilmente, mas com muita esperança. A esperança é inútil?


Você virou o dono da minha lágrima e do meu pesadelo. Guardião de tudo o que me assusta e me faz sentir como quem não pode mudar o destino. E o destino está nas suas próprias mãos.



As palavras de pedido não vão mais se repetir. Elas se guardaram para essa terça-feira, depois de tantos anos solitários e inúteis. Mas é assim que eu me sinto. Inútil ao efeito do cigarro. Inútil. Não adianta esconder seu pacote se sempre terá mais de cinqüenta à venda em qualquer revistaria.


Não adianta mais falar palavras com o mesmo sentido se seu ouvido se recusa a aprender depois dos 30 anos. Não adianta eu querer, se o pensamento não supera o ato.



Te amo.

Beijos.

Tchau.


Mari


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