quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

9/11/2004 11:50:37 AM

Jornal O Globo, caderno Ela, 11/09/04, Rio de Janeiro (RJ):



POR DENTRO DELAS

José Figueiredo





"Um dia eu vou ser o Fabrício", ele promete. Mas, enquanto este momento não acontece, Fabrício Carpi Nejar - daqui para a frente Carpinejar, como ele mesmo se rebatizou - vai sendo outros. E assim o jovem poeta gaúcho já foi um velho, uma árvore, pássaros... Agora, em seu último livro, assume a voz não de uma mulher, mas de várias. E torna "Cinco Marias" (Ed. Bertrand) livro de cabeceira para machos e fêmeas.


Inspirado no tradicional jogo cinco-marias - aquele das pedrinhas, também conhecido como brincadeira dos saquinhos - Carpinejar narra a história de uma mãe e suas quatro filhas, todas elas Maria, que escrevem um diário coletivo durante os dois meses que passam confinadas em casa após o desaparecimento do marido-pai. Cada um dos poemas carrega consigo um desafio para o leitor: imaginar qual das cinco está de posse da palavra.


"'Cinco Marias' traz este universo feminino de mistérios, paixões e segredos, trocando vozes de um poema para outro, como no revezamento de pedras no jogo infantil. A menina, quando brinca de cinco-marias, vê-se responsável por cada arremesso. É como se seu destino dependesse de ela segurar ou não a pedra. Ela se desafia a cuidar do mundo, com generosa entrega", explica o escritor, que vive em São Leopoldo com a mulher, a jornalista Ana Lúcia, e os dois filhos, Mariana e Vicente.


Embora leitura indicada para ambos os sexos, "Cinco Marias" tem alguns poemas terminados com um mesmo verso - "Os homens nunca vão entender" - que pode ser acusado de injusto por leitores masculinos. Afinal, não é cada vez maior o número de homens que, criados sem a presença de um pai em casa, ficam impregnados pela sensibilidade feminina?


Mães solteiras ou divorciadas formaram novo tipo de homem


- Temos um novo homem, sim, formado por mães solteiras ou divorciadas, que descobriu que ser feminino é um dom, não uma privação de sua masculinidade, é saber escutar para se ouvir melhor, é saber se doar para preservar a individualidade. Entretanto, acho que as mulheres devem continuar dizendo: 'Eles nunca vão entender'. Eles só vão entender mesmo quando deixarem de perguntar se conseguiram ou não entender as mulheres, conta Carpinejar, ele também um filho da "Geração Divórcio". Com a separação de seus pais, os poetas Carlos Nejar e Maria Carpi, quando ainda era menino, a mãe e a irmã mais velha tornaram-se as figuras fortes de sua vida.


Nascer ele e falar como ela já foi até moda literária. Nos séculos XII e XIII, mesmo reis lusos de virilidade insuspeita assumiam a voz feminina sem trauma nas chamadas cantigas de amigo ("Ay eu coitada/ Como vivo em gran desejo/ Por meu amigo/ Que tarda e não vejo", versejava d. Sancho I). Mas, a partir daí, os poetas foram perdendo o jeito (a segurança?) de falar assim. Agora, Carpinejar vem jogar suas cinco pedrinhas no lugar-comum de que, no Brasil, macho para entender e escrever como mulher só mesmo Chico Buarque.


E tal como acontece em relação ao compositor carioca, seus versos são daqueles que logo conquistam o leitor e se colam na memória ou, na falta desta, numa página de agenda ou num e-mail para amigos. Por todos os cinco livros de originais - "As solas do Sol", "Um terno de pássaros ao sul", "Terceira sede", "Biografia de uma árvore" e "Cinco Marias" - as dores do amor ganham expressões como "Passei a vida aprendendo a respeitar teu espaço. Como povoá-lo após tua partida?" ou "Descobre-se um amor na iminência de perdê-lo".


Não é só por meio de seus versos que o vate gaúcho vai colecionando admiradores capazes, por exemplo, de transformar carpinejar em verbo com significado algo como "olhar e revelar com ternura a mecânica oculta do amor". No seu ótimo blog (http://carpinejar.blogger.com.br), ele exercita sua prosa, também valiosa, em cima do mesmo foco: a relação familiar, os fantasmas domésticos, as ambigüidades do lar. A separação de um casal amigo pode dar mote a reflexões como esta: "Eles se amam, mas não é suficiente. Amar não é suficiente, amar complica. Amar exige mais do que dar ou receber. Amar aumenta a fome do silêncio, o silêncio da fome. Há um tempo em que se pede tempo, em que duvidamos do que é mais autêntico, não aceitamos a vida com facilidade, que dar certo pode ser muito errado".


A pouco mais de um mês de completar 32 anos, Carpinejar é um clássico do futuro, mas é besteira esperar mais tempo para descobrir o escritor que é visto, pelo crítico José Castello, como o maior nome da poesia brasileira da nova geração ou, por Carlos Heitor Cony, como "um pesquisador da alma e dos anseios humanos".

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