quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

9/12/2004 01:44:49 PM

CADERNOS ESCOLARES

Gravura de Miró


Fabrício Carpinejar


Guardo a viscosidade de uma árvore ou de um ovo. Rumava para escola solitário e encabulado. Os meninos já iam conversando de seus ônibus, alegres e convictos, e eu só tinha de segurança a maçã e a térmica na mochila, os cadernos com capa de papel presente que deixavam todos iguais e eu não diferenciava qual era o de geografia e o de matemática. Minha letra era muito feia para dar de presente a alguém - tentei dizer isso para a mãe e ela não entendeu. Deve ter me beijado para consolar. Toda mãe beija o rosto do filho quando não o entende. Tinha que ensaiar para conversar no recreio. Se uma frase ou comentário não estavam previstos, se um colega me fazia uma abordagem, permanecia mudo, assustado e desconfiado. Fiz-me a maior oposição. De tanto olhar para o chão, firmei uma espécie de intimidade com as lesmas. Eu gostava de cavar a terra para descobrir as minhocas se debatendo. O triste é quando cortava a minhoca com a pá sem perceber e os dois lados se mexiam sem nenhum lado. Me preocupei em ser feliz, o que gerou uma infelicidade danada. Desde que nasci, fui homem feito, dando trabalho para me desfigurar. Não penso o que quero, nem os insetos, senão eles não entupiam os lustres com suas asas. Tenho uma suspeita de que esqueci de ir a um lugar importante, como quem olha um peixe no mercado sem nojo, uma ferida no pé sem nojo. Procuro não sonhar, para não me sentir saciado ao acordar. Não se pode ter simpatia sem uma réstia de repulsa. Os sentimentos são confusos, eles mudam de opinião com o toque. Minha gratidão é receio de me perder mais do que me encontrei. Não sei o porquê: quando me confesso, fico ainda pior, se já estava de mal com as minhas virtudes, fico de mal com os meus pecados. Deus adora acabar com os meus segredos. A infância foi um mundo mais sombrio do que luminoso - ela me ameaçou com paz.

Nenhum comentário:

Postar um comentário