quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

9/10/2004 11:58:03 AM

CASAS ADOECIDAS, CURADAS E ESQUECIDAS

Da série "Minha infância não atravessa a rua sozinha"

Gravura de Miró


Fabrício Carpinejar





Fui homem apenas de quatro casas. Duas na meninice e duas na maturidade. Não me recordo das cores das primeiras residências. Ambas gritavam pátio, que posso estar confundindo com área de serviço. Para criança, um carretel já é pátio, um brinquedo destruído é pátio, a fivela de um cinto é pátio. Eu usava as tampas de lixo como escudo nas brigas romanas de frutas. Os telhados atendiam meu exílio e o dos vaga-lumes. Antes de minha mãe me chamar para dentro, as cigarras me mandavam embora da noite. Na mesa, o pai resolvia em um grito o que a professora tentava arrancar com toda uma conversa fiada. O armazém vendia cigarro avulso. Quando as aves tinham paciência, eu sabia que faria sol. O orvalho vinha de enxerido. Caminhei muitos invernos nos bolsos de meu casaco marrom. Perdi moedas e um escapulário em seu forro. A vizinha fazia tudo para ficar feia e ficava ainda mais bonita. Prendia os cabelos, usava vestido até os pés, e andava reta como se estivesse sentada até o fundo da cadeira. Seus lábios eram como esquina que se controlava da janela. Ela ficava feia para mim, mas bonita para Deus. Santa que não se empobrecia com os milagres. Fulgurância dos tornozelos. Eu pedia ela um pouco emprestado para Deus. Eu fui quatro casas, isso se não contar com o quarto de hóspedes na árvore, onde envelheci sozinho a minha infância.

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