quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

9/9/2004 09:20:05 AM

LISTA DE CHAMADA

Gravura de Pollock


Fabrício Carpinejar





Me escuta sem alarde, com um ouvido lento e o outro distraído. A morte sempre me pareceu uma península do olho, uma ponta do grafite que logo é trocada. A morte era no máximo o retrato dos bisavôs na parede, retocados com lápis de cor. Ela nunca me assustou, me deixou em pânico. Até a perda de um amigo. Eu comecei a perceber as pequenas dores, as articulações nervosas, a entrar em uma paranóia de sintomas, cuidando do tempo, afobado para concluir a conversa, em me despedir de um livro, de um filme, de um amor. Curvo-me diante de minha letra, de minhas fotografias e preocupo-me em não ter sido legível. Eu sei que é ridículo: todos têm medo da morte. Mas tenho medo da consciência da morte. Essa paralisia não vai passar com uma noite, com uma vida, com uma eternidade. É como se a morte fosse uma bomba-relógio e nunca saberei diferenciar na ligação entre os nervos o que é o trote ou denúncia anônima. Tenho receio de explodir de repente, de abandonar o banho, de me sentar no cansaço e não ter sobrevida. De apagar em um estalo, em uma briga e desentendimento dos órgãos, e ser poeira erradia dos versos que não farei, fuligem das minhas roupas. De olhar minha mulher e meus filhos como alguém que não pode entrar em sua casa. Como aquelas salas de aeroporto, em que o vidro é mais espesso do que a carne. Quando pequeno, ficava à vontade para acertar nas provas pela promessa de que ainda haveria a recuperação. Tranqüilizava-me a idéia de que contaria com um reforço. Não, não é a morte de fora que me apavora, é a morte dentro, que amadurece em meus costumes contra qualquer esforço da fé, que não perguntará quantos filhos tenho, o que falta fazer, que pouco lembrará do que esqueci de comprar no supermercado na segunda e não avisará que a lâmpada dos fundos queimou. Moro ao lado de uma igreja, os lamentos saem de sua chaminé e a reza se alastra como fumaça em domingo. Não lembro de quem herdei, mas faço sinal da cruz diante do mar. Molho minha nuca para me batizar, completando a água do primeiro mergulho. Rezo em hebraico sem ao menos conhecer hebraico. Gosto dos barulhos dos idiomas que desconheço - tem tanta espuma. Fui feito para fora do mundo, treinado a não criar expectativas e assim não cobrar depois. Já estive em coma, no Hospital Pronto Socorro, de Porto Alegre, aos 16 anos. Enfermeiras e enfermeiros me seguravam em uma cama de ferro, amarraram meus pés e meus braços de tanto coice em meu sangue. Eu convulsionava, selvagem, e me vi pela primeira vez fora do corpo. É como andar sempre de pasta, mala, e estranhar a leveza. Me esqueci naquela cama e voltei a contento para me carregar de volta ao lugar das palavras. Andava com orgulho por ter sobrevivido ao suicídio de bebidas e drogas. Testava meus limites, sem me importar com a resistência deles. Fui inconseqüente até conhecer que a dor pode ser maior do que o corpo, que mesmo um poema imperfeito não é capaz de nascer de novo. Continuo a permitir a alegria a conviver com a loucura. Não posso proibir sua convivência. As duas se criaram de mãos dadas, partilham confidências. As duas são amigas da infância. Hoje amo inclusive o que a vida não me deu.

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