quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

8/26/2004 12:03:49 PM

UMA RUA SEM SAÍDA


Fabrício Carpinejar


O rosto se repete. Enxerga-se nele a rua, não o morador. Ele é o que recebi mais do posso oferecer. Muda permanecendo igual. Atravessou um pouco mais de luz e ganhou um pouco mais de sombra, só isso. Seus erros e acertos se equivalem. Os defeitos têm a serenidade dos lábios. Há outras rugas, outras covas, outras protuberâncias, mais também aumentou o espaço do riso. Espinhas surgem raramente. Procuror com mais atenção alguma diferença, mas não a encontro. Não quero encontrar. O rosto não se atualiza. Antigo como uma brincadeira que não muda com o tempo: pião, pandorga, carrinho de rolimã. Minha relação com ele é cega. Faço a barba no escuro, cuidando apenas para não alterar o sentido da lâmina e provocar a revanche das veias. Ele permanece do jeito que eu o deixei há trinta e um anos. Não ficou mais erudito, não saiu de sua ignorância. Não se enobreceu com as dores, no máximo se esticou pela curiosidade. Recebeu afago, se meteu em duas brigas na adolescência, tem cinco cicatrizes, ainda pára na lomba. Do meu rosto, desvio dos ouvidos. Odeio a possibilidade de cabelo nos ouvidos. Dá uma idéia de ermitão e surdez. O rosto se repete nos amigos, nos filhos, nos netos, nos pais, nos mendigos. Ele se decora longe. O rosto se repete, alfabeto que a terra mais mostra escondendo. Rédea do mar, remo do cavalo. As crianças não cresceram rápido, fui repentino ao observá-las. Os amores não demoraram, é que os aguardei desde muito cedo. Nasci para não ter escolha porque já sou uma escolha. Convivo com a morte sem pensar nela. O corpo é adivinhar o corpo dentro dele - não temos provas. O rosto se repete. Eu queria debilitá-lo, desfalcá-lo, explicar que não sou o que ele expressa, negá-lo, desmenti-lo. O rosto é honesto enquanto tudo o mais quer fingir. Com uma paciência que se assemelha a infelicidade, com o juízo severo das sobrancelhas e a respiração ofegante que tensiona os músculos. Sem vontade de aprender ou desistir. O rosto me proíbe, seduz desatento, agride cuspindo os dentes. Enverga caretas quando prometia educação. O rosto, sempre ele com a última palavra, divorciado em sua intuição. Interpreta os outros para não ser interpretado.

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