quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/9/2006 11:54:01 AM

Domingo, 9 julho de 2006, CULTURA, O Estado de S. Paulo



DESCULPAS DESNECESSÁRIAS

Aos 59 anos, Paulo Neves reúne em um só volume a poética contundente de toda a sua vida


Fabrício Carpinejar*




VIAGEM, ESPERA

- 40 poemas e outros escritos

Paulo Neves

Capa: Angelo Venosa

128 Páginas

Preço: R$ 29,00



Há poetas que chegam pedindo desculpas, com um olho aberto na imaginação e outro na metalinguagem. Completamente inseguros da eternidade do livro. Falam baixo em seus versos, de mansinho, para não incomodar e chamar atenção. É o caso de Paulo Neves, de 59 anos, há 20 anos traduzindo obras, jornalista e letrista gaúcho, que decidiu abrir a guarda e reunir poemas de toda uma vida em Viagem, Espera. Em seus versos, nota-se uma mistura abúlica de culpa e despretensão, quase se mostrando, quase desistindo.


"Que fazer dos talentos

que recebi e não multipliquei?

Escrever, ensinar, influir...

Vão passando os anos e nem sei

se eram talentos ou enganos.

Onde falhei? Que vontade faltou?

Cumprem-se os talentos à revelia?

É um penhor a minha magra poesia?

Mas eu sei o tormento que é seguir

devedor até o fim."


É uma autocrítica que pode ser confundida com comiseração, mas sinaliza antes rigor e dúvida disciplinada. Mais adiante, ele dirá, novamente assumindo a desvalia crítica: "Ser poeta era belo e triste, mas não imaginava que fosse tão árduo." Não é jogo de cena, Paulo Neves não acredita mesmo em si ou na literatura, é esse o seu ponto forte, tornando seus poemas um caderno de observações irrelevantes e apontamentos miúdos, que geram uma meditação incessante. Não problematiza a morte, a esperança ou a fé, não versa sobre os grandes temas universais com ênfase maiúscula. Eles estão presentes de modo oblíquo, na captação de relances pictóricos (Na Estrada) e na capacidade de multiplicar o som como um tambor e se enfeitiçar unicamente com o ritmo (Filhos de Gandhi).


Em sua proposta realmente modesta, Viagem, Espera é, além do livro, o que o autor pensa do livro e o que ele gostaria de ter escrito. Três seções, uma completa e interroga a outra. Têm-se os versos, um ensaio pedagógico sobre poesia e criação e os que não viraram poemas porque literalmente não obedeceram. Domina um bucolismo de pensamento, uma ânsia de se esparramar na natureza. Uma hesitação que já é existência. Em Pasto, demonstra sua falta de lugar, sempre contrastando sua posição inadequada e desconfortável, presa a um compromisso e objetivo, com a liberdade impetuosa do que enxerga: "O frio da relva é macio,/ dá vontade de ser um focinho/ e fechar os olhos./ Eu sei um segredo da terra./ Eu pasto."


Quem não quis ser um focinho? Poética da vontade mais do que da realização. O fracasso é iminente, mas não interrompe a beleza. Cristaliza - com freqüência - a cisão entre vida prática e sonhada. Enquanto o lavrador pensa no preço do óleo diesel, pererecas saltam de onde brota o arroz. Troca a superficial raiva do protesto, que caracterizaria o panfleto, por uma nostalgia permanente combinada a uma visão aguçadíssima. Paulo Neves alterna um passo atrás nas lembranças e uma observação à frente do cotidiano, com a ciência de que algo escapa à compreensão e à memória.


Do partido das coisas desprezadas, é um perdedor desde o começo, que o qualifica a observações curiosas e extravagâncias acertadas, como a reparar na generosidade do aceno da bananeira. Ou a questionar se as aves estão partindo ou voltando na migração. Ou de recolher a água da chuva confiando que assim está bebendo o céu.


Existe uma pequeneza milagrosa operando o conteúdo lírico, que direciona sua pronúncia a um estado corriqueiro e instantâneo. Estabelece um pacto com leitor de ingenuidade e de partilha de perplexidades.


Paulo Neves acomoda-se ao lado da turma do "deixa disso", formada em nossa poesia por Manuel Bandeira, Manoel de Barros e Mario Quintana. Assume seu lado cômico como tragédia, sua insuficiência como método. Entre o poema pronto e a sensação do poema a fazer, fica com a segunda opção. "O que me encanta na prosa/ é sua cara desarrumada de poesia."


Não pede muito, não promete. Gira ao redor de sua cidade, de seu Rio Guaíba e de seus passarinhos, como um São Francisco expulso da ordem. Revela uma religiosidade fecunda e espontânea, encontrável em uma criança antes da comunhão.


Sua poética não transborda, retrai-se violentamente, ameaçando extinguir-se ao longo da leitura. Esterilizante no sentido de que o escritor acerta as contas, não apresenta um projeto ou uma insinuação de novos caminhos para sua poesia. Parece que o recado está dado - e bem dado. Sua contundência, porém, dispensava as desculpas.


* Fabrício Carpinejar é poeta e jornalista, autor de O Amor Esquecer de Começar (Bertrand Brasil, 2006)

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