quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/11/2006 09:01:24 AM

UMA ESPERANÇA SEMI-ABERTA

Para Caroline, que me inspirou.

Pintura de Marc Chagall


Fabrício Carpinejar





Depois dos filhos, passei a adoecer de compaixão pelos sacos abertos de salgadinhos, dos abiscoitados, das bolachas. Antes, eu comia. A gula diminuiu com a paternidade. Hoje acredito que eles serão devorados na tarde seguinte e dou uma segunda chance. Não quero que estraguem e guardo. Há pouco para colocar em um pote, mas nem tão pouco para jogar fora. Estou parecendo minha mãe, esperançosa como as sobras do almoço.


Ao invés dos arames brancos e elásticos, fecho com prendedores. Mania esquisita: a cesta de vime virou um varal. Nada a reclamar se fosse temporário, mas não é. Criei, de modo involuntário, um purgatório na despensa. Um caldeirão de alimentos penados. As crianças abrem cada vez mais as novas embalagens e ninguém mexe nos antigos sacos, deduzindo que a quantidade é insuficiente para o entretenimento dos dentes. Montei um depósito de restos e apenas me flagrei disso quando começou a faltar prendedores para as roupas. A maioria estava desviada de sua função original e exercia bicos na cozinha.


Eu faço o mesmo - infelizmente - com os pensamentos de minha mulher. Acompanho uma idéia pela curiosidade, mastigo durante um período e deixo para o próximo dia que nunca chega. Não desejo perder, não tiro o olho, porém não desfruto até o fim. Não desperdiço e, ao mesmo tempo, não aproveito. Crio um cemitério de unhas na janela. Ela conta seu trabalho no almoço ou na janta e já a interrompo com outras distrações e não volto ao assunto. Não volto: maldito defeito do homem que se dedica a ir, não a regressar.


Não a escuto, sempre querendo a novidade. Desperto para as extravagâncias. Talvez o que mais a importe seja antigo e dito sem ênfase. Um estar ali, inteiro, descompromissado, sem fugas, sem pálpebras aéreas, sem bocas apressadas. Ultrapassar a monotonia pela dedicação.


O que a incomoda - e que ela não diz - é a facilidade em me mostrar atento para me desinteressar em seguida. Esqueço o que ela mencionou para fingir que me lembro e concordar no escuro.


A intenção em proteger os saquinhos não serve. Eles vão estragar como se estivessem abertos.


Para guardar, devo estar com o rosto de minha mulher permanentemente entre as mãos e não mais confiar em prendedores.

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