quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/4/2006 09:26:47 AM

AQUELE GOL QUE NINGUÉM VIU


Fabrício Carpinejar





Jurei não escrever sobre futebol por enquanto. Mas devo. Preciso bater as costas para engolir o desgosto. Assim como já engoli meu próprio dente em uma briga na infância. Engoli meu dente como uma aspirina, sem água. A seco. A garganta agüentou.


Eu perdi muitas Copas: 74 foi a minha primeira. Ainda lembro de um jogador polonês Lato atravessando todo o campo sem marcação para fazer o gol e nos colocar em quarto lugar.


Rememoro 78, o Brasil não conheceu a derrota e o Peru levou seis quando poderia levar quatro. É inacreditável o que acontece nos bastidores.


A de 82 tornou-se a mais dolorida. Com dez anos, só querendo bater bola nos campinhos, guardo intacto o rosto do Falcão, as veias da testa de Falcão explodindo e comemorando o gol de empate que nos classificava. Um anjo de Leonardo da Vinci retocado pelo desespero de Munch. E, em seguida, a ruína da defesa. Rossi, Rossi, Rossi. Três vezes Rossi. Sócrates cabeceou um cruzamento no final que - por pouquinho - não entrou. Eu imaginei durante décadas a bola entrando e vencendo Dino. Décadas: no chuveiro, no carro, no supermercado, na escola, meus cabelos boiavam na reprise do que não houve, do que não deu. Encontrei Sócrates em uma choperia em Ribeirão Preto, vinte anos transcorrida a copa, e não consegui conversar. Observava sua testa com teimosia. Como se houvesse um hematoma, uma bolha, um caroço. Pensava unicamente na cabeçada que não entrou, o que seria sua trajetória depois da cabeçada, o que seria minha biografia com aquela vitória. O que uma bola sente no outro lado do mundo interfere em sua vida. Aquela vitória poderia ter me entusiasmado a beijar a menina que eu gostava na escola. Ela havia prometido um beijo se a seleção fosse à final.


A de 86 não tinha chance, França nos tirou nos pênaltis, até Zico errou e o goleiro Carlos tomou uma bola nas costas, após bater na trave, para estufar as redes. Muito azar na perícia. Em 90, caímos precoce, nas oitavas, nem senti o gostinho dos feriados.


As de 94, 98 e 2002, sou muito velho para lembrar e a alegria encurta as goleiras.


Voltei a contar com dez anos no sábado. Talvez porque tenha um filho, 4, e uma adolescente, 12. De repente, virei o filho do meio. E nem pude ficar triste na hora, nem chorei como antes. Nenhum sinal visível. Exercitei derrames em silêncio.


Vicente me animou: "agora iremos voltar a assistir o Inter". Mariana brincou com sua idade na próxima Copa: 16 anos... Quando os filhos consolam, fazendo o que deveria fazer, é que alguma coisa está errada comigo. Não me saía da cabeça a cobrança derradeira de falta de Ronaldinho Gaúcho. Estou no trabalho, estou em festas, não importa, recordo Ronaldinho batendo a falta e comemorando. Batendo a falta e empatando a partida no finalzinho. Hipnose exaustiva. Enquanto escrevo este texto, olho para o chão e a barreira anda para a frente. Minha memória só aceita a reversão do resultado. Empacou. Não deixo o lugar na frente da televisão.


O discernimento não é maior do que a ingenuidade.


Não vou dizer que merecíamos perder, não vou dizer que era melhor sair antes, que a seleção teve um plantel de mercenários, não vou culpar um ou outro, não tomarei uma posição intelectual a menosprezar o futebol e reduzi-lo a um esporte, não gritarei que a vida segue, que o ano começa, que agora é torcer para Portugal, não vou. O futebol é quando meus olhos são as minhas pernas. Não sei caminhar de outro jeito. O juiz ainda não apitou aquela cobrança de Ronaldinho.

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