quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/26/2006 09:13:22 PM

CARTA PARA MARIANA

Arte de Joseph Cornell


Fabrício Carpinejar





Você já mudou de casa, de cidade, mas agora muda de estado. Nunca fiquei tão longe. Nunca. É como sofrer um segundo divórcio. O primeiro, doloroso, aconteceu quando terminei o namoro com sua mãe há onze anos. Nos abraçamos como um dia qualquer. Uma despedida qualquer diante da escadinha de ônibus. E me cochichou no ouvido para voltar cedo do trabalho.


E não consegui dizer que não voltaria porque o ônibus já acelerava e porque meu pulmão não encontrou paz entre as palavras.


Antes disso, vivia contigo. Eu é que levava para a creche e permanecia no período de adaptação. Você grudava em minhas pernas querendo brincar comigo e chorava a cada tentativa de fuga. Devo ter entrado na folha de pagamento da escolinha.


Não conseguia me despedir, como hoje.


Você sofria horrores com a tosse. A pele do seu sopro era tão leve e tênue que me obrigava a cortar as unhas para não machucá-la.


Você descansava com relutância, unicamente no colo. Eu cantava e cantava apoiando um pé no outro. Minha voz cansada tentava enganar disposição. Pegava meus cabelos com força para se ninar. Ainda encontrará meus fios em suas roupas.


Ao ser alfabetizada e acertar as letras, levantava seu corpo na diagonal e fazia helicóptero pela casa. Há marcas de seus pés no alto das paredes. É possível enxergar do sofá.


Nós temos olhos caídos. Eu e você. O que será que observamos ao nascer para derrubar os olhos? Viver é assustador, hein?


Você não quer ser parecida comigo. Quer ser parecida com sua mãe. Que ironia. O que mais quero é que digam que sou parecido contigo.


Lembro que arrumava longos varais de bonecas pelas cercas do pátio. Os rostos cacheados ao sol, como cascas de tangerina.


Seu cheiro está em minhas golas como tangerina. No lado de dentro.


Não consegui colocar seus trabalhinhos de aula fora. Nem o jogo-da-velha. Nada. Não a vejo todo dia para ganhar novos e repor a coleção. Guardo pedras para riscar sozinho. Economizo o que encontro.


Lembro quando percebi que faltava um botão da colcha e fui correr até sua boca. Recolhi antes que engolisse e você riu do meu desespero como se fizesse teatro de graça.


Lembro quando trocava suas fraldas de pano e me curei do nojo. Pai se cura do nojo nos primeiros meses.


Mas não me lembro de tudo. Você dormia de luz acesa ou era minha mão que não se desprendia de sua testa?


A primeira vez que você segurou seu irmão no colo. Meu Deus, você não se mexeu. Seu coração deve ter parado como uma ave finge voar para deixar o vento voar nela.


O mesmo medo que teve ao segurar seu irmão, eu enfrentei ao recebê-la no colo. Pegava com os dois braços ou com um? Como sustentar a cabeça? Torcia para que não chorasse, para que não me estranhasse. Minha família me observava para ver se levava jeito. Eu levo jeito, minha filha? Diz para mim?


Você engatinhou nos seios da mãe para andar em minhas costas.


Que minha nuca desemboque no mar.


Eu sempre me preparei para ser pai. Treinei para ser pai, como quem ensaia frases no espelho. Não é como mãe que já é mãe mesmo sem ter feito nada. Pai tem que provar que é pai. Mãe é a primeira chance. O pai aguarda a segunda.


Deve ser por isso que só o homem pode ser daltônico. Só o pai pode nascer daltônico.


Escolhia meus casacos pela cor de seus desenhos. Comparava sua infância com a minha infância. Talvez eu tenha sido meu próprio filho. Meu erro é oferecer o que não recebi e esconder o que me falta.


Fui injusto algumas vezes contigo, apressado noutras. Sou o pai do sábado e do domingo. Dois dias para somar uma vida inteira é muito pouco. Meu amor suportava uma semana para revê-la. E a semana demorava os livros que não lerei.


Você parte para Brasília. Sua adolescência será em novo lugar. Logo agora que me pediu beijo de boa-noite. Nunca havia me pedido. Logo agora que você e a Ana são confidentes. Logo agora que enchemos os telhados dos vizinhos com bolas de futebol. Logo agora que me dá conselhos do que vestir e do que falar.


Preciso confessar: eu não amava antes de seu nascimento. Não era possível amar antes de seu nascimento. Perto de tudo o que sinto hoje, aquilo que sentia antes de você nascer não era amor. Podia ser espera ou apreensão, amor não.


Amor não cabe num final de semana.



P.S: Vou voltar cedo do trabalho. Prometo cumprir dessa vez.

Nenhum comentário:

Postar um comentário