quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/19/2004 09:48:05 AM

O MENINO MORTO QUE VIROU ÁGUA


COLUNA CARPE DIEM


Fabrício Carpinejar


Não quero a perfeição, mas a plenitude. Não deixarei cabelos para crescer com a morte. Quando pequeno, jurava que o vento vinha de dentro da casa. A gente tinha as venezianas do lado interno e o vidro do lado de fora. Abríamos as janelas para o vento sair como um cão que necessita mijar no parque. Hora e não vez, eu levava o vento na coleira. Ele parava somente para encrespar seu cheiro. Bastava sentar e acabava em árvore. Árvore é um homem pensando. Pássaro é um homem desejando. Rio é um homem se retirando para envelhecer em paz. A cerração enlouquecia a luz. A luz ficou cega de repente e andou durante muito tempo sem roupa pelas ruas. A luz tinha seios caídos. Seus seios estiveram em minhas mãos. As mãos são boca apressada. Eu suguei muito escuro para ser visto. Escrever é mentir acompanhado. Minto em Deus, o que me torna uma verdade pressentida. Não se ganhava bicicleta ou roupa, se herdava dos irmãos mais velhos. Vestia o suor dos outros. Nada era novo. O guarda-roupa guardava mesmo a roupa. Usava roupas usadas. Meu irmão me convidou para andar na garupa de sua bicicleta vermelha. Eu levei seu caminhão monociclo pela lomba. Os freios moravam nos pedais. Meu irmão dirigia sem os braços, inclinando o corpo. Eu fui. Fechei os olhos, como se estivesse beijando o sopro. Meu irmão diz que gritou: pula. Não ouvi o gesto do som. Abri os olhos e ninguém mais dirigia a bicicleta. Eu ia sozinho no banco de trás. Eu na canoa sem remo. Eu do tamanho de uma canoa. Explodi em pilhas de tijolos. Sangrei o invisível. Minha vizinha não teve compaixão e riu com os olhos. Sua risada cobriu de mercúrio todo o meu corpo. Meu nariz foi um acidente. Ele enforcou-se na curva dos olhos. Furava as calças e a camisa, a mãe de pronto bordava um remendo de couro no local. Vivia preparado para festa junina. Havia mais curativo do que botão. O muro narra a história das frutas. Ele já foi enobrecido pelo limo. Depois perdeu os dentes de leite e ganhou cacos de vidro onde as crianças caminhavam. Em seguida, recebeu grades de ferro para espantar mau olhado. Hoje ele tem dez parágrafos de cela. Minha liberdade é espiar quem não entra. Quando a casa de candomblé termina seus rituais, a igreja quadrangular começa sua cantoria. Deus se emenda. Não tem pausa. É o que as pessoas acreditam dele, mais sua ausência. Só uma ausência perfeita é capaz de aparecer em qualquer lugar. Somos ausências imperfeitas, lembranças que nunca se contentam com migalhas e voam de acordo com sua fome e pousam com medo de chegar tarde. O encontro é o medo de chegar tarde. Se bem que morro de medo de chegar antes. Odeio esperar alguém. Parece que não tinha nada a fazer de importante. Quando estou disposto a pontualidades, exerço voltas na quadra e me adio. Não corro riscos de estar presente em mim. O amor que dá certo sempre dá errado, porque a memória se torna maior do que o corpo. Reverenciava o poço de meu quintal. Respeito o que não entendo. Um menino tinha morrido ali. Não precisou cavar sua cova, entrou na primeira que apareceu. Engasgou a garganta do pátio. Uns têm alta, outros vão direto ao alto. Eu tomei muita sede do menino morto. O menino morto virou vida potável. Minha irmã brincava de bonecas, eu brincava de menino morto. Ele me emprestava sua manta sobrenatural. Ovelhas cumpriam lã para diminuir sua saudade. Já fui casa abandonada, hoje sou abandono de casa. Me chamaram de homem não no momento em que o rosto enrugou em barba. Ou quando me alistei para não servir. Aconteceu ao ser chamado no corredor do nome a pegar a galinha ruiva para a ceia. Tentei agarrá-la mas ela voou até o telhado. A galinha se fez telha, preenchendo as goteiras. A galinha se transformou em balde sem alça. Um bule voador. As calhas acumularam chuvas com a ninhada de ovos. Os canos estouraram. Daí surgiu a expressão pinto molhado. Não parar na hora certa também é hora certa. Tudo o que não enxergo é relâmpago.


(Rascunho, edição de julho/2004)

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