quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/12/2004 11:26:17 AM

VASO DE GERÂNIOS

Gravura de Pablo Picasso


Fabrício Carpinejar


Sair da linha ainda é costurar. Quando pensamos que acabou, recém está começando. Minha avó viveu toda sua vida deixando a chave de sua casa debaixo do vaso de gerânios. Não duvido que - mesmo ela não estando mais aqui e com novos proprietários em sua residência - a chave permaneça lá. Deve ter virado caule do azul, a serrinha germinado em pétalas, o chaveiro convertido em porão de raízes.


Não me lembro de nenhuma fase de minha vida que não tenha sido conturbada. Não me lembro de nenhuma frase de minha vida que não tenha sido conturbada. Nunca dei sorte para quietudes. Minha mansidão é um surto que passa. Eu me investigo com violência, sem dó nem piedade, exagero comigo e fico até com remorso. Me duvido como quem está mentindo para si. Vive-se para não ser vulnerável, mas é a vulnerabilidade que me mantém atento ao diferente. A intensidade pode errar a força do abraço, não erra a intenção. Às vezes, damos sinais de nossa mudança interna, seja mudando o cabelo, seja de casa, seja de temperamento. É feito de tudo um pouco para ser reparado. De repente, a menina falante fica quieta, o cara arrogante aparece humilde. Mas há mudanças que guardamos para as leituras. Como segredos. Se forem contados, não serão mais importantes. Há mudanças que as aparências não denunciam. Mudanças tão sutis que somente as sobrancelhas são capazes de segurar. Mudanças que ninguém vai notar, muito menos a gente que está vivendo elas. Mudanças que acontecem por um estalar estranho de uma palavra, por algo que se enxerga na distração, por algo que se ama sem a boca. Mudanças pequenas como a chave no vaso de gerânios, regada silenciosamente como parede, apesar de continuar sendo uma porta.

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