quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/11/2004 10:51:39 AM

QUE CIVILIZAÇÃO É ESSA, COM TRÊS FARMÁCIAS EM CADA RUA?


Fabrício Carpinejar





Mariela não tinha letra de médico, e sim voz de enfermeira. Durante seus trinta e cinco anos, não colocou nenhuma caixa de remédio no lixo. Guardava todas as embalagens. Não era hipocondríaca, se dizia prevenida. Fez uma biblioteca de remédios, catalogando as bulas e dividindo as seções pela cor das tarjas. Não ficava doente em excesso, muito menos se antecipava ou reclamava de dores. Buscava tratamento apenas quando realmente necessário, para curar dor de garganta, infecção ou asma. Ela começou sua mania na garagem, mas não encontrava mais a saída ao carro e aceitou jogar para dentro o que não jogava fora. Evitou amores ou cachorros, até mesmo mansos gatos, para não se distrair de suas obrigações. Era curvilínea, como se houvesse um elástico nos ossos, girando o tronco com uma agilidade sobrenatural nas estantes. Podia ser comparada a uma laranja-lima, sem dar a certeza do que vinha a ser laranja ou o limão. Decifrava minuciosamente o corpo miúdo dos efeitos colaterais, tanto que colecionava uma porção de lupas para aumentar a caligrafia do erro. Procurava o que o papel escondia das pessoas mais do que aquilo que mostrava. "Eu dei o melhor dos outros", me confessou por telefone. Desdenhava das farmácias, espécie de livrarias dos remédios, apesar de freqüentá-las. Queria transformar sua história de doenças em doença da história. Permanecia horas diante das cordas das caixinhas, a encontrar um som diferente, um pulso desafinado. Vivia a reger a orquestra de sintomas. Só que sua memória passou a ser maior do que sua vontade de lembrar. Desapareceu lentamente sem que ninguém percebesse. Adoeceu sem adoecer. Entre copos de água e colheres, não entendia como precisou engolir inúmeros comprimidos mesmo estando longe de morrer. Multiplicou quantos remédios tomou e chegou a conclusão de que a soma ultrapassava até o seu vocabulário. Era tarde para aprender a esquecer. Ter consciência do que se vive é loucura.

Nenhum comentário:

Postar um comentário