quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/4/2006 02:58:39 PM

FINAL DE VIDA

Pintura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar





Em final de festa, sempre bate uma fome. E não poupamos esforços em procurar um cachorro-quente, caldo de feijão, um prensado, sopa, qualquer coisa para reanimar o corpo e voltar para casa com a obrigação atendida do café da manhã. Não escolhemos, aproveitamos o que vem, agradecemos o que está aberto. Não somos enojados, superamos as restrições alimentareis e sociais, capazes de comer o que nem estamos acostumados.


É agradável parar um pouco numa barraquinha ou num trailer e se deter diante de sua companhia com os olhos lavados e pacientes da noite. Afora o prazer do silêncio depois de deixar o som incessante de uma balada. Um silêncio total, onde se ouve com nitidez uma cigarra trocando de árvore ou as braçadas das estrelas voltando para a margem.


O final de nossa vida deveria ter a mesma fome. Não o conformismo. Não a desistência. Não o cansaço das virtudes e a complacência dos defeitos. Não a resignação de que já se fez o melhor e agora é tarde.


Manter a fome como se a vida fosse terminar a cada dia que passamos. Supor que se morrerá logo mais e ser um condenado à vida. Porque quem está com dias contados aprende a ser um condenado da vida e se liberta da morte. Da idéia da morte como extinção. Já quem pensa que pode viver até os 80 anos, é um condenado da morte e não aproveita nada, porque deixa para depois o que não virá a tempo.


Se eu morresse hoje, treparia com a minha mulher até perder a coordenação das pernas, largaria a caixa de mensagens e o computador e sairia com os amigos, telefonaria para conhecidos que não vejo há dez ou quinze anos, compraria presentes para os sobrinhos, deixaria minha mãe falar sem interromper, seria mais sutil como as mulheres, menos apressado como os homens, escreveria loucamente as memórias dos dias que não estarei aqui, experimentaria comidas exóticas, freqüentaria a praia de madrugada sem temor de assaltos, pularia ondas para me lembrar das voltas largas e do estalido da corda na escola, visitaria a casa de minha infância, não seguiria pedidos como o de não pisar na grama ou não conversar com o motorista, tornaria-me uma oração insubordinada, dançaria com a música das lojas e dos supermercados, subiria nas árvores com os filhos para jogar frutas nos outros bem escondido, andaria no cemitério para decorar lápides desconhecidas com flores, não sairia mais de guarda-chuva, leria o jornal com canetinha colorida, daria minhas roupas para os amigos que mais amo para vestirem em meu enterro, iria ser coroinha por uma missa, confessaria minha vida a um garçom.


Se eu morresse hoje, iria curiosamente esquecer de morrer, tão ocupado em me despedir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário