quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/11/2006 02:41:23 PM

Jornal O Tempo, caderno Magazine, Belo Horizonte (MG)

Domingo, 11 de Junho de 2006


"SOU UM HOMEM COMUM"

Foto Renata Stoduto




LILIANE PELEGRINI


O gaúcho Fabrício Carpinejar é, essencialmente, um homem de detalhes, tanto na poesia quanto no modo de viver. Ele mesmo costuma afirmar que não consegue se fixar em si, acaba se comportando como uma antena que capta todas as coisas, pequenas ou grandes, que acontecem ao seu redor.


Uma história vai se juntando com outra, palavras vão sendo encadeadas, até formarem frases ou versos que têm como única preocupação a autenticidade e a naturalidade. Nascido na fria Caxias do Sul, Carpinejar se diz um garoto de família ("sou tão ligado aos meus familiares quanto os mineiros").


E isso realmente faz sentido: seus poemas entregam de bandeja a forma - sempre intensa - com que ele se relaciona com cada coisa ao seu redor.


Desde a relação com a irmã mais velha, até os primeiros contatos com a literatura por meio dos pais, os poetas Carlos Nejar e Maria Carpi, tudo faz parte da narrativa que ele propõe aos seus leitores.


Durante sua última passagem por Belo Horizonte, Fabrício reservou um momento para conversar com o Magazine sobre o seu universo de poesia - e agora também de prosa - e para desmistificar o título de poeta-revelação que a crítica lhe impingiu. "Não quero ser o poeta aclamado. A normalidade me encanta mais", panfleta.


O TEMPO - Todos os seus livros anteriores tinham sido de poesia. Agora você surpreende com "O Amor Esquece de Começar", em que você escreve prosa, uma faceta sua até então desconhecida. Essa transposição foi tranquila?

Fabrício Carpinejar - Eu sinto uma alegria enorme de escrever, não importa como. Mas essa minha migração para a prosa aconteceu há pouco tempo. Não foi nada forçado, foi tranquila. Não quero dizer uma coisa por dizer.

Tenho que sentir necessidade, tenho que sentir essa avidez. Aconteceu no momento certo. Na verdade, eu acho que sou mais perigoso com a prosa. Sou mais incisivo. Mas eu estou usando a poética ao fazer prosa. É um vestíbulo da poesia.


Sua prosa, que aparece agora em forma de livro, já vem sendo divulgada no seu blog pessoal (www.carpinejar.blogger.com.br). O blog foi, inclusive, fonte para o livro. Você readaptou o texto da versão on-line para a impressa?

Escrevo sempre em torno de 2.300 caracteres. É uma coisa que vem para mim normalmente. Parece que eu sinto a hora de acabar o texto e ele acaba.

Quando vou ver, está igual aos outros em tamanho. Escrever para mim é igual, não importa o meio. O que importa é a intensidade.


Você está acostumado com essa dinâmica da Internet em que, como você mesmo disse, o texto não acaba com o ponto final. Mas, ao mesmo tempo, você lida há bastante tempo com o formato do livro, que não lhe permite saber diretamente o que os leitores pensam da sua obra. Como transitar bem por esses dois meios de respostas tão diferentes?

No caso do livro, eu não tenho domínio. Ele não é mais meu, é do leitor. Não que eu não queira mais saber dele e da repercussão que ele pode causar.

Mas é que ele vai estar bem cuidado, mesmo que o leitor não goste dele. O leitor vai transformá-lo, vai encontrar suas próprias identificações, vai fazê-lo obra sua.


E sua relação com os internautas?

Com a Internet já é mais familiar. Tem leitores que são pontuais no meu blog, estão sempre comentando. E daí eu começo a imaginar como eles são. Não são só eles que me imaginam.

Eu só sei o nome deles, mais nada. O email ou uma página que eles têm, no máximo. A Internet é um livro em que o autor e o leitor se lêem ao mesmo tempo. Interatividade pura. E o texto não termina com o ponto final do autor.

Ele continua com cada comentário, que vai acrescentar uma lembrança, uma descrição, uma evocação, uma opinião. Na verdade, eu sou um apaixonado pela insuficiência da literatura. Quero que a literatura nunca seja suficiente.


Qual é o papel que você, uma pessoa ligada à tecnologia, acredita que esses tipos de ferramentas modernas podem fazer pela poesia, pela literatura?

A tecnologia está moldada para a poesia. A Internet, os celulares, tudo isso. Imagine a revolução que podemos fazer se as pessoas começarem a mandar seus versos, ou os versos de quem você ama, por torpedos de celular?


Eles são do tamanho certo. A poesia se adapta muito bem a essa brevidade. Pense como muitas obras poderiam ser divulgadas facilmente, com meia dúzia de cliques.


Na sua opinião, a poesia hoje é mais "consumida"?

Acho que sim. A poesia está muito mais acessível, muito mais sarada, disposta. Todo mundo precisa de poesia, a questão é deixar de lado essa arrogância autoral. O leitor pratica e exercita poesia naturalmente.

Qualquer um faz isso, qualquer um precisa de metáforas, de figuras de linguagem. O campo de futebol, por exemplo, está cheio de metáforas, de figuras de linguagem, de lirismo. A gente só precisa de naturalidade. Quando dou minhas oficinas de criação poética, nem me preocupo em falar de teoria.

Proponho exercícios, que as pessoas executam pensando que não estão fazendo poesia. A melhor poesia é aquela que se faz sem ter consciência de se estar fazendo. Quando você não quer impressionar. Quando você é normal, pacato, sincero, autêntico.

A poesia tem uma imagem cristalizada, como se ela fosse um desabafo, uma catarse e tu precisa usar palavras chaves como "amor", "ilusão", "esperança", palavras muito gastas. O poeta está sempre recriando a linguagem. A sua linguagem. Sem precisar premeditar.


Você tem o costume de sempre participar de saraus e apresentações que lhe permitam apresentar seus poemas. Fazer essas leituras interpretadas é uma forma de fazer do poema um "ciclo de vida" mais completo?

Quanto à performance, juro que não é nada programado. Digamos que a linguagem me toma. Quanto à leitura dos poemas, acho que não é completar o ciclo, é iniciar o ciclo.

Na medida que a gente publica o livro, ele está recém-começando. De uma certa forma, é confortável para ao autor publicar um livro e pensar que ele vai seguir sozinho. Mas a gente tem uma responsabilidade, tem um compromisso com a voz. A interpretação de um poema, de uma crônica é um escândalo, no bom sentido.

É algo que vai confrontar aquela voz do silêncio com a voz que emana do poema. É uma reunião de condomínio que acontece dentro de ti com aquela gritaria, aqueles palpites, aquele confronto. Eu sou a favor da eletricidade do convívio.

Por isso acho que as minhas leituras não são performances. Acho que são muito mais afeto, abraçar as pessoas, fazê-las participar, inspirá-las. Claro que também tem seu valor ler em silêncio. Mas escutar a voz do autor filtrando a emoção, destilando a emoção, ébrio de emoção é sempre melhor.


Você é um narrador de sentimentos rasgados, intensos. De onde vem essa sua inspiração?

O poeta funciona, como eu costumo dizer, com a idéia de ladrão arrependido. Eu sou um cara que rouba a memória de todo mundo para devolver em livro. Eu sou como uma esponja, um observador indiscreto, um curioso. Na literatura, tu transforma a curiosidade em desejo, desejo em fome.

Por exemplo, se eu vou jantar fora, tenho uma dificuldade imensa em me concentrar na minha mesa. Eu passo o tempo tentando escutar as conversas alheias. Sou uma antena. Nas minhas obras, dificilmente eu estou falando de mim. Estou falando dos outros em mim. Eu ainda não tenho casa própria no verbo.

Eu ainda vivo de aluguel. O que me interessa realmente é contradizer os costumes. Gosto muito de um pensamento que diz que o poeta não é inspirado, é um inspirador. Ele não tem que tomar para si a autoria.

Acho que o melhor poeta é aquele que se torna invisível, que desaparece no texto para o leitor poder tomar como seu, cada pensamento do livro. O poeta que é muito vaidoso, vai querer que o leitor pense exatamente como ele quer. Mas o leitor só tem que pensar como quiser.


Por conta dessa sua postura de capturador de histórias alheias, alguém do seu círculo já se reconheceu em suas obras?

Está no livro não tanto a história, mas o sentimento de uma amiga minha que, uma vez ao ano, ela não existe. Não existe, não faz nada. É o dia da morte do filho dela. Teve uma vez que eu marquei um lançamento de um livro nesse dia e ela avisou que não poderia ir. Ela não tem 365 dias como a gente.

Tem um a menos. No livro, eu ainda falo da minha irmã mais velha. Nós somos uma família de quatro filhos, três homens e ela. A história dela é fantástica porque foi ela que abriu a casa. Ela que saiu para morar com namorado, tornando mais flexíveis as exigências de casa.

Foi ela que fez a minha primeira festa para os amigos, que me ensinou a dirigir e a dançar para não passar feio diante das meninas. Foi ela que me achava bonito quando todo mundo me achava feio. Essas são histórias que eu trago. São conexões que a gente abre com o mundo.


Dá para perceber que seu trabalho todo é permeado por essa ligação com a família. Deve ser até pela genética, visto que você é filho de poetas. Como é viver a poesia assim, dentro de casa?

Sou tão família quanto os mineiros. E a poesia veio para mim tão natural, não tinha pressão nenhuma, meu pai e minha mãe não ficavam dizendo "oh, estou fazendo poemas".

Acho que foi aí que a coisa me pegou, porque eu não sabia que era poesia. Eles falavam, obviamente, com aqueles lirismos que, para mim, eram comuns. Na hora que eu saí de casa e fui usar o repertório de família é que vieram me dizer que eu estava fazendo poesia.

Mas para mim, aquele era o dialeto de casa. Foi uma coisa involuntária na minha vida, muito normal. O escritor tem que perder aquela coisa de querer ser estranho, excêntrico, diferente, anormal.

O que eu mais quero é ser comum. Não quero que digam que sou o homem de versos excepcionais. Quero tomar sorvete com a minha mulher, rolar na grama, acordar com farelos no cotovelo, falar pela voz dos meus filhos.


AGENDA - "O Amor Esquece de Começar" de Fabrício Carpinejar. Lançamento editora Bertrand Brasil, 288 págs., R$ 35.

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