quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/4/2006 02:57:43 PM

SEM NOME

Pintura de Juan Gris


Fabrício Carpinejar





Quando não se entende o que se sente é a melhor parte. Os namorados se beijam nem sempre para beijar, e sim para não ter que falar. A palavra destrói o amor, o beijo cura


Numa sorveteria de Porto Alegre, faltou plaquinha para nomear um sorvete.


São quarenta sabores, somente um desprovido de batismo. Todo mundo que é atendido fica curioso com aquele pote no canto, anônimo. Vi gente coçar a barba, o cabelo, o umbigo diante do mistério gelado. Como se fosse um enigma. Uma rua ainda não pavimentada pela boca, infantil, em que as crianças jogam bola de uma garagem a outra sem se preocupar com a movimentação dos carros.


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É mortal: das duas ou três bolinhas escolhidas, uma delas é justamente o sem nome, agora Sem Nome, pois de tanto ser chamado de Sem Nome acabou sendo esse o seu nome. Chocolate com amêndoas, pistache, morango e crocante; os gostos tradicionais foram superados na lista dos pedidos. O Sem Nome é o que mais sai, justamente porque ninguém sabe ao certo o que está lambendo e há o temor de perguntar do que se trata. O receio de esgotar o segredo e frustrar a brincadeira de cabra-cega.


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O mesmo acontece com o amor. Quando não se entende o que se sente é a melhor parte. O trecho da paixão, a vontade de se aproximar sem pensar. A vontade de se encontrar para permanecer mudo. A vontade de telefonar para não dizer coisa alguma, apenas respirar ofegante e gemer diante do aparelho como operador do telessexo. Os namorados se beijam loucamente nem sempre para beijar, e sim para não ter que falar. As palavras são incômodas. A palavra destrói o amor, o beijo cura.


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O amor também tem seu sorvete Sem Nome. E o que não será declarado apesar de longa convivência. É o que deveria ser dito no início mas a ansiedade não deixou, o que deveria ser dito no final mas já se tinha intimidade. Um tremor, um desespero alegre. Um apego pelo cheiro do pescoço. Um apelo pelo cheiro adocicado e selvagem do sexo no quarto. Um apego pelo cheiro dos travesseiros tomando sol na janela. Até um apego pelo cheiro de guardado do guarda-chuva, pelo cheiro de guardado do blusão na parte de cima do armário, pelo cheiro de guardado das lembranças.


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O amor é o Sem Nome. Olhar para um filho aprendendo a escrever com uma das letras ao contrário e rir comovido daquele "E" caminhando na contramão da linha. E perguntar para a letra: "onde vais?" e não corrigir para segui-la.


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A DR, por exemplo, nunca tem fim. Não é para ter fim. Pois ninguém conseguirá aclarar por que se ama ou por que se deixa de amar. O casal pode varar madrugadas debatendo o comportamento, o que é certo e o que é errado, o que é justo ou injusto, só que não chegará a nenhuma conclusão. Chegar a nenhuma conclusão é o Sem Nome. As discussões terminam pelo cansaço ou pelo sexo. Não se encerram porque foram resolvidas, não se pode definir aquilo que é maior do que a própria vida. Duas vidas juntas são mais difíceis de serem resumidas. Não é como tese, que vem com uma sinopse na primeira página.


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Recapitula-se o que se viveu e teremos uma seqüência desordenada de imagens, um videoclipe sem música. Entende-se o que se ama pela ausência de esclarecimento. O absoluto entendimento parte da confusão: será que estou ou não estou amando? Quanto mais confusos, mais intensos.


Enquanto não tivermos palavras para explicar, continuaremos amando. Por isso, deixo a bola de sorvete do Sem Nome ao fundo, para comer com a casquinha e fazer bastante barulho com os dentes.


PUBLICADO EM ZERO HORA, CADERNO DONNA

Coluna de Luis Fernando Verissimo - Interino

Porto Alegre, 04 de junho de 2006. Edição nº 14892

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