quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/28/2004 11:14:16 PM

MINHA INFÂNCIA EM 1920

Gravura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar





Eu me procuro para não falar nada. Lamparina e poço. Não havia luz domada, água educada de gente. Tudo assim na gota, no joeirar das pedras. Pedalava meu cavalo. A crina ensinava a mão em rédea. Cheiro de funduras do mato. Unhas grandes de esporas, solas chamuscando chão. Montava pé de milho. Minha altura controlei pelas hastes. Urinava nos joelhos com medo de temporal. Meu medo de temporal se transformou em o quê? Ciscava clarão nos longes. Mundo não transbordava, afundava em si. O mar era cego e não me achava. O mar estranho de frutas pisadas - não os via com tranças. Os baobás me cuidavam enquanto os pais trabalhavam. O campo batido e as traves com as forquilhas arrebentadas. O alto era tão vôo que não se ouvia. Urubus acanhados como moças sem os dentes da frente. A tosse do avô vinha manca. Tropeçava na porta. Quarto, cozinha, banheiro estavam dormindo na sala. Infância de sarampos e barrigas cheias de vento, de caxumba e uma aula distante como a missa. Engordava até com o que não comia. Todos pobres, não existiam mendigos. Cigarro de palha restava moído de dedos. Uma batida para o galo piscar. Cemitério não tinha porteiro, retrato. Cemitério fugia em direção à praça. Namorava meninas sem elas saberem. O carro dos bois trancava de rolha a estrada. Os pássaros serenavam atalhos em córregos. Lama nos pés deslizava a carne. Banho de rio com roupa de baixo das ervas. Descobria a temperatura dos dias pela quentura dos trilhos. Valia vadiar canivete em barba-de-bode e frutas-de-lobo. Espinho passava da mão a planta. Raspava cabeça em cercados. Mula sem pavio. Jogava pedra na água para margear afogados. Um afogado virava ilha para subir. A paz do que não teve trégua. Desaconteci como nascimento. Apertei Deus e ele não gritou. Espiava o firmamento sem cinto, gordura do azul. Usava a compaixão de uma camisa somente no domingo. Conversava com espantalho para aprender a calar. Formigas sorteavam terra. Solidão sem bolsos. Assombração era viver. O mundo bem maior do que minha coragem de lembrar. Ter nome não fazia nenhuma diferença.

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