quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/27/2004 11:04:55 AM

VEIO DE SOLEDADE PARA SE OUVIR

Gravura de Escher


Fabrício Carpinejar


Veio de Soledade para me ouvir. Saiu de casa às 2h, tomou um ônibus para chegar na oficina de poesia às 9h em ponto. Passou por 220 Km para desembarcar em Porto Alegre. Lá estava ela e seus olhos tão líquidos que nem as pupilas eu poderia encontrar. Não reclamou da viagem. Escorria sua solidão nunca sozinha. Falou pouco durante a aula. Leu seu poema, de uma tarefa. Lutou contra o sono, mexendo as pernas. Os cotovelos serviam de cavalete ao auto-retrato. Ela me olhava com a fome que bem podia ser parente da minha infância. O homem só precisa de pedras para arranjar música. A poesia não tem passado. No final da aula, se aproximou, com uma mansidão apenas possível do alto das cidades. Confessou que um amigo de Soledade precisava mais de minha oficina do que ela, que cederia seu lugar, apesar de desejar ficar. Afagava a boca com os dentes. O dente é o lápis da boca. A voz, o vapor. Somos a surpresa do que não deixamos de ser. As abelhas são chamas que não viraram cinzas. Eu segurei sua mão para não escapar a minha. Segurar a mão é o único abraço que o terço inveja. O cheiro do que vive é vôo. Os livros que a gente não lê nos influenciam. A fé não tem testemunhas. Não sei se a encontrarei no próximo sábado. Sei que ela estará em mim me aguardando.

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