quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/23/2006 10:55:27 AM

DEBAIXO DA MESA

Pintura de Philip Guston


Fabrício Carpinejar





Vamos a um restaurante, Vicente come, brinca um pouco com as latinhas de refrigerante e, de uma hora para outra, desaparece para debaixo da mesa. Arrasta os cílios e sua corda de casaco aos subterrâneos da refeição. É sempre assim. O hábito da criança em exercitar esconderijos.


Emplumado na toalha, mexe nos nossos pés e brinca em adivinhar o ponto de vista de um cachorro. Se ele não fizesse isso, nunca me lembraria de que sou igual. Jeito engraçado de arrumar às pressas um quarto para dormir e de fugir das comparações; bastava deslizar pela cadeira e a solidão nos aguardava. A barraca já estava montada e se escutava o trololó dos adultos com a displicência de ervas.


Toda estrada é uma espada - dependemos do sol para diferencial o metal da pedra. Meu olhar é meio ao chão, não por ser deprimido, muito menos por vergonha. Ele é resultado do tempo que via o mundo debaixo da mesa. Para uma criança, sua altura não é medida por régua, e sim pelas pernas dos pais. Recordo dos sapatos encerados que a minha mãe usava para sair ou das meias de cores trocadas de meu pai (sem graça de avisá-lo da gafe). Procurava objetos tutelares. Sempre alguém esquecia algo. Havia um grampo, uma borrachinha de cabelo, um prendedor de gravata, uma moeda, um brinco. Ninharias exuberantes para quem não esperava encontrá-las. A criança é sincera, pois permanece em contato com o solo. Não se acredita dono de uma conversa, dono de uma vida, dono de um nome. Sua boca é o prato, os talheres são os dentes e o resto é movimento.


Em encontros animados, é comum desaparecer. Os amigos pensam que fui ao banheiro. Ou que me antecipei para pagar a conta. Ou que me ofendi com um assunto. Estranhamente me escondo debaixo da mesa. Mudo a perspectiva do relacionamento quando me sinto muito alto e confiante, muito invulnerável e exibido, muito senhor de si. Quando minha vaidade de ser observado é mais forte do que a vaidade de abrir os olhos. Uma reação de desapego, de reinício.


Não é necessário lavar os pés de quem se ama. Mas ficar perto deles para amarrá-los às mãos.

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