quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/23/2006 10:51:48 AM

Jornal Rascunho, edição de junho/2006, número 74


Críticas e Resenhas



IDIOMA SEM PALAVRAS

Primeiro livro de Carpinejar como prosador é mistura de crônica, confissão e manual de sobrevivência


Moacyr Godoy Moreira - São Paulo - SP

Fotografia de Renata Stoduto







O amor esquece de começar

Fabrício Carpinejar

Bertrand Brasil

286 págs.



"Para amar, basta seguir a água." Assim, simples. Em O amor esquece de começar, Fabrício Carpinejar, cujas publicações anteriores trazem poemas, estréia em prosa com um formato diverso, algo de crônica, algo de relato confessional, algo de manual de sobrevivência amorosa neste mundo de pedregulhos. A simplicidade dá o tom das relações e, para o autor, os que conseguem perceber as verdadeiras dimensões dos problemas, sem estereótipos ou lugares-comuns, vivem mais intensamente e podem, quiçá, almejar o que se classifica ordinariamente como felicidade.


Há, no livro, textos que beiram o aconselhamento, como os que falam sobre os filhos para pais separados, ou mesmo, momentos em que se sugere a entrega à profundidade e aos instintos como uma das poucas saídas possíveis. Porém, o que se destaca no conjunto das crônicas é a poesia. Em meio a um episódio mais corriqueiro ou uma observação aparentemente despretensiosa, surge a veia lírica de Carpinejar a ecoar no texto, a torná-lo mais elegante. Na tradição da crônica brasileira, notava-se semelhante efeito no texto preciso de Paulo Mendes Campos, poeta também, e em Rubem Braga, que não publicou versos, mas os derramava em meio às crônicas, invariavelmente.


Além da simplicidade, mais dois elementos perpassam as narrativas: a linguagem indecifrável do silêncio - dos gestos que falam por si - e a grandiosidade que há nos detalhes imperceptíveis, nos fragmentos: "o vitral é tão bonito porque já nasce em pedaços". Os cacos que, juntos, emitem uma luz multicolorida e fascinante, recolhem-se dos acidentes domésticos, do ex-marido que se percebe mais solitário que nunca, da ex-mulher que suprime sua dor com chocolates e filmes românticos. No homem que lava os cabelos da mulher amada, no amigo que se deixa abraçar para que, através daquele corpo sem nome, materialize-se a dor da perda de um filho. Em Seis meses, uma frase quase chinesa, que poderia figurar no I Ching, fecha a crônica: "Mesmo a árvore mais desatenta cuida da estrada".


Com isso, o autor retoma nas crônicas uma temática comum a sua poesia, a busca de uma essência que não é perfeita, mas que, quando encarada de forma verdadeira, ajuda a fixar as tortuosas raízes, que compõem o caráter e viabilizam as relações. Há no livro uma forma sutil de descrever o mergulho na dor, como a mulher que se vê só, depois de tempos casada: "Deixará a samambaia sofrer como ela. Será capaz de comprar cactos por causa das pedrinhas brancas. Entende o estado mineral. [...] Agora já abre os potes de pepino e constata o quanto é fácil girar a tampa com o pano de prato".


Um gesto singelo, como perceber hábitos do companheiro, a mulher que desabotoa a blusa do umbigo para os seios, e não ao contrário como se faz usualmente; a delicada descrição das sutilezas que pode ter uma cadeira de balanço; coisas assim aparecem ao longo de O amor esquece de começar, dispersas nos textos, demonstrando a sensibilidade para os silêncios do outro, para a respiração mais espaçada ou mais densa, cada qual com significados particulares. Em Para dois: "A falta de palavras é também um idioma".


Lygia Fagundes Telles, no belo e pouco conhecido A disciplina do amor, livro composto de inúmeros fragmentos, abre assim o volume:


"Estranho, sim. As pessoas ficam desconfiadas, ambíguas diante dos apaixonados. Aproximam-se deles, dizem coisas amáveis, mas guardam certa distância, não invadem o casulo imantado que envolve os amantes e que pode explodir como um terreno minado, muita cautela ao pisar nesse terreno. Com sua disciplina indisciplinada, os amantes são seres diferentes e o ser diferente é excluído porque vira desafio, ameaça. Se o amor na sua doação absoluta os faz mais frágeis, ao mesmo tempo os protege como uma armadura. Os apaixonados voltaram ao Jardim do Paraíso, provaram da Árvore do Conhecimento e agora sabem."


Fabrício Carpinejar pisou o terreno sagrado e agora sabe. Por meio das crônicas de seu mais recente livro, este saber é aspergido como o pólen nos tempos da primavera, pólen repleto de cotidiano e salpicado de poesia.




Fabrício Carpinejar: poesia e simplicidade.

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