quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/20/2006 08:20:39 PM

A ÚLTIMA REFEIÇÃO

Pintura de Fernando Botero


Fabrício Carpinejar





Comida de mãe é outra coisa. Talvez seja porque envelhecemos e a saudade aperta os dentes. Minha vontade é recuperar o guisadinho posto de canto, o feijão amontoado nos lados, as batatas que deixava no prato da infância, o arroz sequinho que nunca dei valor. Comeria hoje todas as minhas sobras com vigor. Nenhum restaurante se compara aos temperos cultivados na própria horta.


Eu peço para que a mãe cozinhe - ela avisou que já cumpriu o tempo de serviço. Ninguém insistiu para que cozinhasse. Aliás, tenho que me oferecer, o que significa o quanto sou um fracasso perto do fogão. Eu aprendi a fazer cordeiro. Meus filhos não me solicitam. No mercado, encontram maneiras de me distrair para que não chegue ao açougue. Quando ofereço meus préstimos, não há um pingo de entusiasmo, mudam de assunto, pedem outras iguarias, perdem a fome. Eu também aprendi a fazer panqueca, com direito a jogar ao alto e tomar rapidamente a massa com a frigideira. Eu, na verdade, praticava panqueca. Mas a Ana inventou de competir comigo e prepará-las, como um jeito educado de mostrar minha inapetência. Ao invés de comer fingindo que gostava da refeição, antecipou-se para não sofrer. Assumia meu lugar para salvar o casamento. Não tenho como me comparar a sua arte: a massa fina e o recheio abundante me desmoralizam diante das crias.


Assim como os condenados à pena de morte têm direito a escolher sua última refeição, a mãe criou um método de entusiasmar seus filhos na superação de exames. Em todo vestibular ou provação mais severa, ela se prontificava a elaborar o prato predileto do candidato da família. Perguntava o que se desejava comer com a naturalidade de quem diz boa-noite. De manhãzinha, sumia para catar os ingredientes. Voltava arrebanhada de sacolas. Poderia exigir comida tailandesa, que lá vinha. Lamento não ter me inscrito em mais concursos. Perdi diversas chances de renovar o paladar e saciar as fantasias de grávido de minha vida. Na seleção da UFRGS, desejei quibe frito. Recebi porções generosas com um detalhe: unicamente destinadas para mim. Os irmãos me suportavam comendo e suspirando... Era uma realeza gastronômica. Ainda oferecia um pedacinho a eles para debochar. Não aceitavam por orgulho. Em represália, intensificava meus suspiros de limonada.


Claro que comia demais e passava mal nas provas. Mas isso minha mãe não precisa saber.

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