quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/21/2004 10:53:06 PM

O MUNDO ME CONVENCEU CEDO DEMAIS

Gravura de Marc Chagall


Fabrício Carpinejar





As palavras precisam de par, querem dançar. Quando sozinhas, permanecem no canto, de cara amarrada. Vou costurando vozes antigas como casacos. Não passo frio na linguagem. Os livros queimam mesmo longe do fogo. Amaino o mate com o fim da tarde. Escrever é desistir de explicar. Escrever é ser emprestado. Eu me emprestei para os lírios. O corredor de casa lembrava uma sacristia. Havia um anjo de metal pendurado na parede. Ele tinha um jeito envergonhado de quem mijou nas calças. A água benta ficava dormindo em seus pés. Minha mãe trazia sempre um potinho da missa. Dava de beber ao anjo uma vez por semana. Antes de entrar no quarto, fazíamos o sinal da cruz com a sede. As rachaduras nas paredes começaram nas asas do anjo. Debaixo da cama, uma garagem de chinelos e sapatos. Cheirava a morcegos. Odiava sair do meu canto e viajar porque sentávamos no bagageiro com um pelego vermelho. Quatro filhos amotinados nos cabelos ruivos. O carneiro não tomava banho. Enjoava o hálito. Nosso carro atravessava o estômago de um peixe. Desconfio dos sonhos com a mesma tenacidade em que desconfio da realidade. O sonho é uma advertência, não uma verdade. Ao mentir contava sonhos que nunca me conheceram. Ninguém questiona o que foi sonhado. Sonhar é uma ignorância permitida. Avanço na idade e não sei discernir o que foi vivido do que foi contado. Tenho dúvidas se minha infância é realmente o que vivi ou o que sonhei nela. A gente refaz o passado para se convencer. A mentira é detalhista, quer ser tão perfeita que se torna imperfeita. A verdade é imperfeita porque não espera convencer. Homens honestos parecem mais culpados do que homens culpados. Homens culpados ensaiam suas mentiras. Homens honestos são ingênuos porque a verdade só conhece a improvisação. Cavo a terra pela nostalgia do ventre. Cavo o corpo pela nostalgia da terra. Gorjeio a respiração. Escrever é confusão. Confusão é desejo. A confusão chama o desejo para conversar pertinho. Ninguém escreve ou ama com certezas. Há dois tipos de observador. O que dirige e o passageiro. Uns passam a vida com o olhar de motorista; os outros, com o olhar periférico de acompanhante. O motorista decora as ruas, procura um lugar para estacionar por força de hábito, fixa em atalhos e trajetos conhecidos, não escuta os movimentos do corpo. O acompanhante esquece as ruas, escuta o pulmão, desdobra caminhos novos e está aberto ao que não aconteceu - ele nunca sabe onde vai, sabe que não necessita saber. No casamento existe o olhar de quem dirige e o do acompanhante. Dois motoristas no casamento resultam em acidente grave. Não sei da onde tirei essa idéia. Tenho que me combater e não me acostumar comigo. Pretendo ficar devendo para a morte. Ser mais boato do que notícia. Dias desses, chutei uma caixa de bolas de gude. Não é recomendável andar no escuro em casa com crianças. Os brinquedos são cegos. Elas voaram em arremesso entusiasmado, fazendo um estardalhaço macabro de enxadas batendo na noite. As bolitas formavam uma outra espécie de luz, como vaga-lumes economizando árvores. Pensei que iria pisar em uma delas, patas de cachorro, e cair dentro do latido. Pensei que levaria uma rasteira da infância. Ainda estou de pé, mas com a respiração deitada. Recordo do casamento de uma prima. Ela ostentava um colar de pérolas. Um convidado abraçou desajeitado a noiva, o braço enganchou no vestido e o feixe arrebentou. As contas do colar foram saindo da igreja, em fila indiana, numa procissão de aias. Enquanto ela chorava, eu apanhei uma das pérolas para fazer um brinco para a namorada da época. O brinco é um anel que escuta.


(Coluna "Carpe Diem", jornal Rascunho, edição junho/2004)

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