quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/16/2005 09:50:43 AM

NA CADEIRA ALTA

Fotografias de Leandro Selister


Fabrício Carpinejar


No ônibus, eu sento no banco alto do fundo. Tenho uma predileção em repousar lá em cima. Com o lado todo do vidro, as ruas escoando pelos joelhos, deslizo os olhos como um segundo motorista. Lembro da cadeira de manivela do barbeiro. O ritual de ficar adulto. Pensamentos sérios acontecem naquela altura. Nunca serei completamente o que devo ser. Um pouco de mim sobrará, não será usado, será esquecido. Interpretar-me não me muda. Trocar a aparência do cabelo ou da barba não me muda. Posso ser um pássaro da cintura para cima e ainda assim não aprenderei a voar. Um pássaro não voa com uma única metade. Procuro a vida inteira uma outra metade de pássaro a me agarrar para alçar leveza. Mas me convenceram de que devo ser um homem respeitável e fui cortando as garras como se fossem unhas. Só que um homem com duas pernas ainda é um pássaro manco. Ao nascer, se destrói a plumagem ou a casca. Alguns não se sentem incomodados em viver no escuro. Não sei relatar a minha história, porque me falta crueldade para editá-la. Aquilo que brota espontaneamente é difícil de comunicar. Na maioria das vezes em que pedi desculpa não me conscientizei de que estava fazendo errado. A retratação não é um auto-retrato. Permitir é se proibir depois. Não, não sofro medo de ninguém. Entretanto, qualquer um pode despertar meu medo de mim. Carrego admiração e temor ao mesmo tempo, simpatia e repulsa. Não busco a independência, busco ser cada vez mais dependente para não viver sozinho. Herdei momentos sombrios - são os momentos de maior luz e clareza que tornam exigente o mais adiante. Quem viveu um grande amor cedo vai comparar as novas relações com essa intensidade perdida. Não se assassina o passado, o corpo anota tudo o que foi dito pela vida. O corpo é um taquígrafo disciplinado. Vejo que careci de bondade em meus comentários, me defendia sem ser atacado. Transformei em provocação o que dizia, transformei em ironia a delicadeza, transformei em sarcasmo a censura da imaginação. Recuso a serenidade, as mãos frias de um morto. Saber me atrasa. Adivinhar me adianta. Que Deus não me revele nada depois da morte. Que seja um desinformado eterno. Todo rosto masculino tem algo de uma mulher. Meu rosto guarda as orelhas. Casei-me com os ouvidos. A dúvida é livre. O desejo é uma dúvida inalterável que troca as perguntas. Tudo o que se observa com muita atenção vira reza. Rezo minha mulher. Rezo meus filhos. Não se pode rezar para si. Descuido-me com facilidade. Quando a gente se arrepende de amar já estamos amando novamente pelo arrependimento.

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