quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/14/2005 09:08:43 AM

EUGÉNIO NÃO SE CONTENTOU

EM NASCER UMA SÓ VEZ


Um dos maiores poetas da língua portuguesa, Eugénio de Andrade morreu na segunda (13/6), aos 82 anos


Fabrício Carpinejar






José Fontinhas, filho de camponeses, morreu na segunda (13/6), aos 82 anos, em Porto, como um desconhecido.


Dentro do corpo de José Fontinhas, morreu na mesma segunda, aos 82 anos, um dos maiores poetas portugueses: Eugénio de Andrade, Prêmio Camões de 2001, traduzido em 20 línguas, autor de extensa obra, tendo publicado mais de 30 livros de poesia, e outros de prosa, infantis, antologias e traduções.


Assim como Pablo Neruda (que se chamava Ricardo Neftalí Reyes Basoalto), Eugénio de Andrade criou seu nome e inventou seu espírito. Um desígnio de quem não se contenta em nascer uma só vez. Na pátria de Fernando Pessoa, era valorizado como um ícone a tal ponto que chegou a batizar importante fundação literária. Empurrou a "jangada de pedra" além fronteiras. Jorge de Sena saudava sua musicalidade como "firme e fluente em estado de milagre momentâneo". A romancista francesa Marguerite Yourcenar comparava sua poesia como "o som de um cravo bem temperado", instrumento de cordas com um som ligeiramente ácido, que lembra mais o alaúde do que o piano moderno.


Foram mais de seis décadas de poesia, desde a estréia em 1942, com "Adolescentes". Alheio aos movimentos literários, aos quais se referia como clubes desportivos, Andrade recusou as mordomias, a clausura de panelinhas como os neo-realistas, os cadernistas e os surrealistas. Amargou a exclusão e dela tirou proveito em benefício da originalidade.


Com uma escrita solar, seus versos são curtos, ásperos e rugosos como pequenas fatias de um pão de centeio. "De repente,/ vi o mar subir a prumo,/ desabar inteiro sobre os ombros" (Ostinato Rigore, 1977). Alternava a atmosfera do mar com a do campo, sempre respondendo a um apelo, especialmente olfativo. Há o predomínio de imagens que partem do cheiro do feno, da resina, de limão e de poeira. Utilizava o olfato como motor sensorial da lembrança e condutor do passado em pura expansão visual. Conferia materialidade a uma manifestação espiritual, permitindo o arrebatamento corporal. "Que cheiro doce e fresco/ por entre a chuva,/ me traz o sol,/ me traz o rosto" (Coração do Dia, 1958). É lirismo da delicadeza. Estava próximo da elementaridade da condição humana, evocando a natureza como alter ego. Soube conservar o conhecimento adquirido na tradição oral, relativo ao ciclo biológico dos animais, à mudança de correntes do oceano e ao exercício da lavoura. Fez falar o que não tem palavra: a pedra, a neve, a chuva, os pombos. Ecoa as vozes familiares da aldeia simples onde nasceu, Póvoa de Atalaia.


As pausas dominam sua poética. O silêncio é maior do que o dito. "Gastamos tudo menos silêncio" (Os Amantes sem Dinheiro, 1950). A leitura é realizada a partir de escombros, pedaços, fragmentos que resistiram ao peso das vivências. A criação fica reduzida aos excedentes da mudez, às palavras que sobreviveram à omissão. O texto visível é apenas o ponto de partida, pois o leitor é transportado com freqüência para fora do poema. A poesia importa como rastro, lacunas, expressão evocativa da fuga. A impressão é que Eugénio de Andrade não está dentro do que escreve, acabou de sair, deixando a tinta úmida na folha. Trata-se de um diálogo pretérito, em que o lamento mistura-se ao acento da saudade.


De maneira um tanto paradoxal, ele expôs a procura desesperada de um sentido para a vida na contenção da forma. "Agora é verão, eu sei/ tempo de facas/ tempo em que as cobras perdem os anéis/ à míngua de água" (Limiar dos Pássaros, 1975)


Eugénio de Andrade não circulava no tempo presente, falava de um tempo consumado ou de um personagem distante. O tempo era disposto na obsessiva ocorrência a estações. Talvez estivesse seguindo um preceito de Gaston Bachelard, em "A Poética do Devaneio": "As lembranças não têm data definida, mas uma estação." Setembro aparece como o mês da venenosa claridade. Em julho, os cavalos procuram beber a água do sol nos olhos das crianças. No verão, todo o rumor é ave. Durante o inverno, os pássaros lembram casas lentas e usadas, de coração apagado. O tempo entra na pele, na intimidade dos objetos domésticos, não para repousar ou enferrujar, e sim para animar e dar mobilidade ancestral à matéria. Tem-se a decadência do mundo descrita pela vitalidade da percepção, combinando a síntese dos epigramas gregos com a dança e rigor verbal de Cesário Verde.


O autor reescreve sua infância consciente que ela não teria volta. Encontrou a gravidade da morte na graça do erotismo. Pisou no limiar da própria sanidade, no extremo de uma lucidez que pode ser loucura. "Creio que foi o sorriso,/ o sorriso foi quem abriu a porta./ Era um sorriso com muita luz/ lá dentro, apetecia/ entrar nele, tirar a roupa, ficar/ nu dentro daquele sorriso./ Correr, navegar, morrer naquele sorriso" (O Outro Nome da Terra, 1988).


Sem desbancar ao hermetismo, Eugénio de Andrade descobriu o equilíbrio entre a serenidade e o transbordamento, entre a imanência e a transcendência. Como afirmava em "O Sal da Língua" (1995): "a poesia adora andar descalça nas areias do verão". Basta seguir suas pegadas, antes que a maré ou o vento as apague.


"Nada podeis contra o amor,

Contra a cor da folhagem,

contra a carícia da espuma,

contra a luz, nada podeis.

Podeis dar-nos a morte

a mais vil, isso podeis

- e é tão pouco!"


Frente a Frente

Nenhum comentário:

Postar um comentário