quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/17/2005 09:56:03 AM

DESAMARRADO

Para a poeta Fran

Pintura de Van Gogh


Fabrício Carpinejar





Meus cadarços duram apenas vinte minutos. O nó é infiel. Não sei amarrar. É uma de minhas tantas fraquezas. Se corro um pouco mais, lá estão os cordões desembrulhados, lambendo o chão. Eu tropeço em mim. Dou nó em gravata, mas com o sapato me perco na hora de fazer a ponte. A mão sempre quer passar por cima como um pedestre, não por debaixo como um barco. Tentei seguir um desenho na infância e o máximo que fiz foi colori-lo. Proponho um laço de cabelo quando na verdade deveria montar uma barraca. Meus sapatos não são capazes de falar adeus, suspiram um "até logo". Não terminam relacionamentos, adiam o final. Na escola, passei grande parte do tempo escondendo essa imperfeição. Deixava a corda embutida no feixe. Amontoava ciscos em ninho. O vento aproveitava a ausência de prendedor.


Quando jogava futebol, não foram poucas as vezes em que o tênis voou junto com a bola. A sensação é que andei toda a minha vida com pantufas, o couro folgado, carretel de lã. Impregnei-me de uma ternura vadia, de crepúsculo e odor de chuva na terra. O sapato frouxo faz barulho de gripe. A língua para fora, cachorro com sede. As meias são devoradas no tornozelo. Os sapatos acabaram insaciáveis, curiosos, boêmios. Vivem longe de casa. Comem o que ainda nem andei. Desagradável é ser notificado em cada esquina por escoteiros: "teu sapato está desamarrado". Quase respondo: "será que posso cair mais?" Mas me controlo e finjo amarrar. Ajoelho-me com freqüência para orar lesmas.


Poderia recorrer a mocassins, só que os defeitos são narcisistas. Metade de meus atrasos deve ser creditado aos fios soltos. Criei uma série de táticas para não ser observado. Como um mágico embaralhando cartas, sou rápido para confundir. Minha letra é feia em função dessa falha dos pés. Não posso escrever educado, pois não sou capaz de educar o que caminho. Não posso andar na linha, minha caligrafia é um mapa cardíaco. Isso explica também a minha adoração pelo uniforme escolar, porque descia as lombas do corpo com zíper.


Caio com naturalidade. A queda não deixa de ser uma rua. Alumbramento aconteceu na residência de minha mãe. Eu já adulto e ela se agachou para cruzar seus cadarços. Notei que ela tampouco sabia. Acho que meus irmãos enfrentaram o mesmo destino em silêncio. Minha mãe me ensinou os tropeços.

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