quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/11/2006 03:03:05 PM

AMOR BÁSICO

Pintura de Magritte



Fabrício Carpinejar





Não gostava nem um pouquinho quando os adultos mexiam em meus cabelos. Tinha a impressão que eles estavam limpando as mãos em minha cabeça. Eu me sentia a pia de um banheiro público. Devo ter perdido os fios como vingança.


Sou desconfiado para praticamente tudo, menos o amor. Sou ingênuo, inacreditavelmente crédulo. Não custa pecar pela inocência. Não me incomoda levar um fora, o que me desagrada é não estar em mim para tentar sair.


Minha mulher é sabida. Ela e a felicidade se entendem sem discutir a relação. Partilham uma solidariedade de fumantes (não precisam se conhecer para puxar assunto, há o vício em comum). Não depende de nenhum presente caro, e de uma prova escandalosa de afeto para se ver recompensada. Não sairá à cata de jóias, de carro novo, de festas badaladas, contenta-se com uma aliança para lembrá-la de dobrar a esquerda. Não é e nunca será apagada, ou conformada. Sabe o que necessita: um abraço gostoso e um sapato confortável. Sua satisfação começa ao morder os próprios lábios.


Ela quer estar à vontade dentro do seu corpo ou do meu. Ouvir uma canção que conheça a letra. Comentar as notícias do jornal. Ir a um cinema pra deitar em meu ombro (acho que meu ombro criou uma almofada natural de propósito). Dançar de olhos fechados (caso não feche, não curtiu a música). Vibra ao receber minhas ligações durante o dia mesmo que eu não tenha nada de novo para dizer. Se eu sonho com ela, logo monta em meus joelhos, imobiliza-me e deseja conhecer os detalhes. Não há como me levantar sem contar. De modo nenhum, minto que sonhei, enfrentarei muito trabalho para inventar a história e convencê-la.


Sua imagem de liberdade é sentar na cama de calcinha e uma camiseta básica. Igual ao pôster que colocou atrás da porta em seu quarto de adolescente e que nunca vi para comparar. Nada mais a deixa tão feliz. Depois de tomar banho, permanece mastigando essa sensação de independência. Cheira duas almofadas, confere a lavanda e as põe em suas costas com delicadeza de uma coberta no filho. Cruza as pernas como se fosse voar. Nem acredita que já é mãe, já é casada, já se formou, já tem sua casa, seus problemas e várias gavetas na sala para as virtudes.


Ao não acreditar que cresceu, tampouco envelhece.

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