quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/11/2005 01:57:18 PM

CORREIO BRAZILIENSE, CADERNO PENSAR, 11/6/05, Brasília (DF)



Literatura

O CONTO DO VAMPIRO AOS 80

O curitibano Dalton Trevisan, que faz aniversário na próxima terça, lança mais dois livros e o país novamente se curva diante de um dos maiores mestres da narrativa curta



Sérgio de Sá

Especial para o Correio




Reprodução/Dalton Trevisan



Você pode até não gostar, mas indiferente não há de ficar diante de uma ficção que fratura até a medula, fragmenta o indivisível, fricciona as boas intenções. Mas que não é frufru nem cricri, por favor. Dalton Trevisan faz 80 anos na próxima terça-feira, 14 de junho. E os vampiros sairão pelas ruas de Curitiba, pelas ruas de todas as cidades das letras, para brindar ao mestre do conto. Com gosto de sangue, na companhia de Nelsinho e da Polaquinha, duas das personagens possíveis dentro de um universo especial.



Dalton Trevisan é homem que se fecha pra valer, capaz de romper para sempre com quem quebra o pacto da reclusão. Os amigos são bem-vindos, desde que calados da porta de casa para fora. Jornalistas, nem pensar. O autor de Novelas nada exemplares fez mito em torno de sua excentricidade. Nem sempre foi assim. Ele teve uma existência, vamos dizer assim, pública. Em 1946, criou uma revista mensal de arte, a Joaquim, homenagem "a todos os joaquins do Brasil".



Ilustrados por Poty e outros artistas plásticos, os 21 números da publicação paranaense marcaram época. Depois, só ouvir falar.

Volta e meia, as histórias escapam e o escritor ganha algum volume real. Para deleite dos que o veneram à distância. O caminho entre a leitura e o baque, a palavra e a sedução. "Amo o Dalton, reverencio o Dalton, tenho um altar dedicado ao Dalton na entrada de casa", derrama-se a escritora Cíntia Moscovich, ela própria contista de mão-cheia. "O minimalismo, a recriação crua, a crueldade pura, esse cinismo que vira humor de uma maneira oblíqua, o jeito de escrever com graça somente o que é essencial, são as maiores virtudes do moço, são as virtudes que todos, ao escrever, perseguimos."



Para o também contista Marcelino Freire, Dalton é simplesmente genial: "Se não for o maior contista, é o maior minicontista que temos. Microcontista porreta, sei lá. Uma vez afirmei que o Dalton escreve na velocidade da sombra. É tudo rápido, mas lentamente, entende? Como um anoitecer, de repente. Vôo de vampiro que ninguém vê. Denso e vupt, vapt", define - trevisanamente - o autor de Angu de sangue.



Em 2004, Marcelino organizou a antologia Os cem menores contos brasileiros do século (Ateliê Editorial) e confessa que fez o livrinho-livrão em homenagem a Dalton Trevisan. "E ele não podia deixar de participar. Mas e agora, o que fazer? O homem vive trancafiado, será que vai responder ao meu chamado? Escrevi uma carta e esperei. Nem contava mais com a resposta, quando um envelope chegou à minha porta, manuscrito: 'De Dalton Trevisan para Marcelino Freire'. Eta danado! Quase tive um minitroço. Abri o envelope e o microconto estava lá. Sem contar que ele aproveitou para mandar, de presente, dois livros dele. Genial! Dalton é danado."



Quem também teve a sorte de ser, digamos, correspondido foi José Salles Neto, presidente da Confraria dos Bibliófilos do Brasil. A vontade era publicar uma antologia de contos. O contato foi feito por um intermediário, Eleutério, ex-proprietário de uma livraria freqüentada pelo "vampiro de Curitiba". A primeira resposta demorou oito meses para voltar: Dalton topava ser editado pela Confraria, mas queria que fosse seu único romance, "A polaquinha". "Eu vibrei e, depois, acho que ele gostou bastante do resultado. Me mandou uma carta em que dizia ter ficado 'absolutamente encantado' com o livro", conta Salles, um dos poucos felizardos a receber os famosos folhetins que Dalton produz de modo caseiro e deixa em alguma livraria de Curitiba para serem encaminhados ao destino final.



Além do folclore


Dalton Trevisan, porém, vale muito mais do que o folclore. O abismo é mais embaixo. "Bobagem falar da decisão de permanecer oculto. O que realmente importa é o fato de ele ter encaminhado sua literatura para o máximo de concisão, antes mesmo de outros perceberem a importância desse gesto, e até quando escritores nem sequer tinham começado a esbravejar contra o leitor apressado. Trevisan sorriu (sorrateiramente) para esse leitor, poupou-o de qualquer adiposidade", comemora Paulo Paniago, jornalista e mestre em Literatura Brasileira. "Sei que ele existe porque os livros dele existem. Ele conseguiu fazer dele mesmo ficção, um personagem a nortear a produção literária, e a própria poética do conto brasileiro", diz Cíntia Moscovich.



E, afinal, surge a pergunta que não quer calar: Dalton Trevisan é ou não é o maior contista brasileiro vivo? "Dalton Trevisan é o maior contista brasileiro. Vivo ou morto. Ao lado de Sérgio Faraco e Rubem Fonseca", elenca o poeta gaúcho Fabrício Carpinejar. Para a crítica cultural mineira Eneida Maria de Souza, o autor de Guerra conjugal continua sendo um dos melhores contistas brasileiros vivos. "O humor, a concisão de linguagem e a criação de personagens comuns e caricatas são a sua marca registrada."



Sobre a aparentemente inevitável comparação com Rubem Fonseca, talvez pela influência sobre as gerações posteriores, talvez pela mesma idade (Fonseca completou 80 em maio), Eneida afirma não ver relação entre as duas poéticas. "Ambos respondem por diferentes concepções de literatura. A única semelhança que os une é o culto do escritor invisível, da construçao de uma política autoral ligada ao desaparecimento gradativo da imagem pessoal e da vida privada."



Na opinião do jornalista e escritor José Castello, Trevisan é, sem dúvida, um dos grandes contistas brasileiros do século 20. Entretanto, "observada a obra em seu conjunto, não há dúvida de que os contos de Rubem Fonseca são tão, ou mais, importantes que os de Trevisan." Além disso, Castello afirma concordar com a tese - bastante difundida em relação aos dois autores, diga-se - de que, a partir de certo ponto, Trevisan passou a se repetir. "Toda a busca do 'conto mínimo', que parte da crítica tanto festeja, me parece mais um sinal de cansaço do que de riqueza", analisa.



Cíntia Moscovich duvida que o próprio Dalton fosse gostar de ser considerado "o" grande contista. "E quando um sujeito como o Dalton, superior e imbatível, vira o maior e o melhor, a gente pode se apavorar, porque é difícil ultrapassar a própria obra. O Dalton não é o maior contista brasileiro vivo, mas, ao mesmo tempo, só ele pode se ultrapassar, e isso pode ser uma maldição e uma bênção. Dalton só vai ser o maior contista brasileiro vivo a seguir, amanhã, depois. Só quando ele lançar o próximo livro. E o próximo, e o próximo e o próximo de uma seqüência que a gente quer que seja infinita. E que vai ser."



E, ao que parece, será um futuro cada vez mais poético, como se pode perceber nos recém-lançados Rita, Ritinha, Ritona e 33 Contos Escolhidos (leia resenha na página 5). "Em seus últimos livros, Dalton vem trabalhando com uma técnica de miniaturização (que lembra a técnica do bonsai). Ele está trabalhando na fronteira entre a narrativa e a poesia. Como se ele despisse a narrativa de tudo o que é supérfluo. Isso é poesia. Não são os temas que interessam em Dalton. É a forma", explica Adalberto Müller, poeta e professor de literatura da Universidade de Brasília.



Com ele concorda Carpinejar. "Dalton pode ser visto como um contista de surtos líricos. De haicais ferozes, revelando um estado de espírito alterado e incomum. Valoriza a teatralidade da descrição, a introdução de uma atmosfera densa e precisa, com o aproveitamento máximo das imagens com o mínimo dos caracteres. Os diálogos estão em avançado poder de síntese. Rabisca croquis do inusitado. São lampejos de efeito (mais do que frases de efeito), perpetuando a contradição, o avesso e os instantâneos mágicos. Funde, numa mesma equação, o arrebatamento final do conto com o gancho final do poema. Dalton é um contrabandista do lirismo na prosa", sentencia.



E estamos conversados, e muitos anos de vida, amém.

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