quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/9/2005 08:47:01 AM

DIÁRIO CATARINENSE, CADERNO VARIEDADES


Literatura


A INCAPACIDADE DE NÃO SER POETA

Fabrício Carpinejar lança Como no céu / Livro de visitas, duas obras num único volume trazendo os seus novos poemas


MÁRCIO MIRANDA ALVES


Foto(s): Emilio Pedroso/agência RBS



Claro-escuro: Carpinejar diz que o livro duplicado pretende mostrar a relação a dois sem fachadas







Um dos poetas mais expressivos da poesia brasileira contemporânea não pára de inventar moda. Após o aclamado Cinco Marias (2004), o gaúcho Fabrício Carpinejar retorna à cena com dois livros em um. Ou um em dois. Como no céu / Livro de visitas, que será lançado nesta quinta-feira na Livraria Cultura do Bourbon Shopping Country, em Porto Alegre, trata do mesmo tema num exemplar duplo e sem contracapa. O segundo é lido de trás para frente, como um espelho do primeiro.


Cinco Marias foi traduzido para o alemão e rendeu ao poeta elogios sinceros de escritores que estão acima da crítica como Carlos Heitor Cony, Ignácio de Loyola Brandão e Antônio Skármeta. Em Como no céu / Livro de visitas (o sexto livro), Fabrício Carpinejar atinge o nirvana da criação poética no que ele mesmo classifica de "crônica lírica de costumes" acerca de um casal protagonista.


É nesta dualidade que serve de sustentáculo para o desejo que o poeta de São Leopoldo, nascido em Caxias do Sul, formata poemas que "conversam em voz alta, com os ruídos da casa e os cheiros da rua".


Nesta entrevista concedida por e-mail para o DC, Fabrício Carpinejar poetiza sobre o seu trabalho, o processo criativo e a condição de ser poeta no Brasil.


Diário Catarinense - Tu inovastes ao publicar dois livros em um, sem contracapa. Opção criativa ou ânsia de se fazer ouvir?


Fabrício Carpinejar - Nem uma nem outra. Ânsia de se fazer ouvir, não tenho, porque não suporto minha voz por muito tempo e não desejo essa tortura para mais ninguém (risos). Opção criativa seria o equivalente a um jogo. Não estou jogando com a poesia, estou vivendo a poesia. Ela é minha suprema incapacidade de ser qualquer outra coisa. O livro surgiu duplicado por necessidade: queria mostrar a relação a dois sem fachadas, aparências, meias-palavras. Uma poesia do amor substantiva, não exagerada, adjetivada, carregada, falsa. Uma poesia cotidiana, com os ímpetos de acertar mesmo quando se erra. Procurei combinar o claro-escuro, o amor e o ódio, a dependência e a liberdade, essa dualidade e tensão que permeiam todo o casamento. Como no céu representa a vontade de aprender mais do que ensinar. Livro de Visitas é a vontade de ensinar mais do que aprender. Qualquer casal escolhe uma das formas. Acredito que não deveria existir a dominação, mas a compreensão. Se cada um risse um pouco mais, haveria no rosto menos covas e mais boca.


DC - E o tema do amor? Me parece que é a primeira vez que enveredas por esse caminho.


Fabrício - De uma forma direta, é a primeira vez. Terceira sede era um canto de perda, de um viúvo que sente uma terrível falta de sua mulher. Esse é um canto de presença, com a eletricidade da pessoa perto, vigiando, opinando, completando, se opondo. São livros conversando entre si, como um casal. Procuro derrubar o biombo dos preconceitos, encontrar a emoção onde havia pressa. Os casais são educados para julgar, sentenciar, impor regras e limites, ao invés de partilhar. A criatividade não pode ser subjugada pela rotina. Casamento não é amor, é apenas uma forma de chegar até ele. Ao me entranhar nessa seara, sabia dos riscos. Sem riscos, não há prazer. O poeta alemão Hölderlin dizia: "Cresce o perigo, cresce também a salvação". Todo mundo já fez um livro de amor, costuma ser o suicídio do poeta. Precisava passar pelo medo da morte para entender a esperança. Reconheci a gentileza das pequenas carícias e doações. Como a mulher que não gosta de café e passa o café quando seu marido viaja para não se sentir sozinha. O cheiro diminui sua solidão.


DC - Escrevestes no Biografia de uma Árvore que "Não ter para onde ir é uma forma de sempre chegar". Teus poemas vagam a esmo ou procuram uma cancela para entrar?


Fabrício - Se tem uma porta aberta, não espio, entro. Não sou de me importar com formalidades ou perder tempo falando o que não acredito. "Não ter para onde ir é uma forma de sempre chegar" quer dizer que todo lugar pode ser o ideal, basta estar presente o suficiente para povoá-lo. Há o costume de planejar demais a vida (vou ser isso, quero isso, desejo aquilo). Não adianta, a vida é improviso. Não fico mais irritado quando a biografia acontece de um modo que não esperava. Fico até feliz que a vida pede mais do que posso dar, assim me procuro onde não estou, onde não cheguei. Não termino de me escavar.


DC - Teu livro Cinco Marias foi traduzido para o alemão e agora será para o francês. Encaras a linguagem como barreira ou (re)transformação dos signos?


Fabrício - Retransformação dos signos. Quando traduzido, trata-se de um outro livro. Novamente criado e escrito. Possibilidades que não adotei surgem em outros idiomas. Até a força do vento muda a língua. Sugestões e texto oculto, ligados à coloquialidade, podem sumir e devem encontrar efeitos semelhantes. Não é uma tarefa fácil do tradutor, ele começa do zero.


DC - Teus versos parecem que vêm ao mundo como uma criança que não chora, mas está viva. Esse parto é sempre natural?


Fabrício - Bonita imagem. O parto é sempre natural. Mas o fôlego é treinado. Como digo em um poema: era para ter nascido no sábado e só vim numa segunda como quem começa um emprego.


DC - Ser poeta num país de poucos leitores é crime ou castigo?


Fabrício - Entre ser sádico e masoquista, prefiro ser sádico. Chega da poesia como expiação dos pecados, como espaço de sofrimento e dor, purgatório e confessionário. Pode ser arrebatamento, fé incontrolável, euforia. Encontrar uma palavra para alguma lembrança, entender uma situação que se viveu, despertar a vontade de amar são alegrias dadas pelo poema.


DC - E ser filho de poetas (Fabrício é filho de Carlos Nejar e Maria Carpi) é uma pedra no caminho?


Fabrício - É o próprio caminho. Me possibilitou ser mais exigente comigo, educar meus medos, superar a comparação, entender que o conhecimento não é posse. Quanto mais sei, mais dúvidas tenho. Saber é questionar, adiar o final. Eu me sinto pleno quando me esvazio e deixo espaço dentro de mim para as outras pessoas.


DC - Tu dissestes que o poeta é um "fofoqueiro do inconsciente". Não sabes guardar segredos?


Fabrício - Não sei guardar. Todos os poemas foram segredos que eu me contei e agora estão publicados. Até peço para o confidente: não me fale, é uma tentação que não sei administrar.


DC - A criação poética para ti é inspiração, transpiração ou alucinação?


Fabrício - Transpiração alucinada. "Custa muito ensaio ser espontâneo." Acabo transpirando tanto que alucino e a febre toma gosto em ficar. Não acredito em inspiração, acredito em respiração. A asma me ensinou o quanto é valioso escutar a respiração tranqüila. Só a possibilidade de respirar sem crise já me deixa saciado e pronto para escrever. Não há melhor música do que se aproximar do rosto dos filhos ou da mulher dormindo e sentir aquela textura do ritmo, a sinfonia do sopro.


DC - É possível o poeta ignorar o autobiográfico na articulação dos versos?


Fabrício - De jeito nenhum. O poeta deve encarar situações fictícias sempre com um sentimento biográfico. O sentimento deve ser biográfico, não necessariamente o verso ou a cena. O poeta leva o desaforo que o outro recebeu para casa. Pega desaforos emprestados e devolve em livro.


Como no céu / Livro de visitas, Fabrício Carpinejar. Bertrand Brasil (Rio de Janeiro). 224 págs. R$ 29


( marcio.alves@diario.com.br )

Florianópolis (SC), 07/06/05. Edição nº 6993

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