quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/8/2005 12:16:42 PM

Estado de S. Paulo, caderno Cultura, 8/5/5



ARTESÃO DE TERNURA PARTIDA

Habilidade e originalidade se fundem para revelar o cotidiano em nova coletânea de Fabrício Carpinejar


Daniel Piza


Fotografia de Renata Stoduto/Divulgação



CARPINEJAR -Em sua poesia ressoam Bandeira e Drummond, além da natureza de Saint-John Perse e Ted Hughes


Um dos novos poemas de Fabrício Carpinejar diz: 'Quero dar nome./ O que não tem nome/ é enterrado como indigente./ Não posso aceitar, quero dar nome.' Fabrício Carpinejar tem alguns outros nomes. O de batismo é Fabrício Carpi Nejar, filho dos escritores Maria Carpi e Carlos Nejar.


Talvez ele tenha unido os dois sobrenomes como gesto poético. Além de colar pai e mãe, separados ainda em sua infância, criou uma palavra que, como observou outro dia Andréa Trompczynski no site Digestivo Cultural, parece um verbo: 'Carpinejaste as palavras', disse ela. E o apelido de Fabrício é Fabro - que faz pensar no cumprimento de Dante a Arnaut Daniel, reproduzido por T.S. Eliot a Ezra Pound: 'il miglior fabbro', o melhor artesão.


Carpinejar é um artesão que manipula cada palavra como argila e povoa a casa inteira de estatuetas, todas batizadas. Vide seu livro em lançamento, na verdade dois gêmeos siameses, um começando em cada capa: Como no Céu/ Livro de Visitas. É o sexto volume desse poeta gaúcho de 32 anos, o primeiro desde o excelente Cinco Marias, de 2004. Como no Céu tem 120 páginas e seu tema principal é o casamento. Livro de Visitas tem 104, numeradas de trás para o meio, e recolhe lembranças de infância. Ambos se somam no que poderia ser um auto-retrato, ou até uma auto-retratação, mas não é: 'Me apetece confiar em todos/ e não acreditar em mim./ Penso no mundo com tamanha ternura/ que só posso me repartir com violência.' É esse poeta de ternura partida que fala com o leitor, não só nesses versos mas também na prosa poética de seu já cultuado blog (http://carpinejar.blogger.com.br), e lá como cá mostra como é possível falar de seu cotidiano sem cair no confessionalismo, no diário de impressões automáticas. Seu trabalho é nomear, jamais rotular.


Carpinejar é um criador ciente do intervalo consigo mesmo: 'Esforço-me agora para desaprender'; 'Ao me confessar, pioro a estima'; 'Sou egresso da tosse'; 'Sou o que falta aprender'; 'Me vendi por menos, me comprei por mais'; 'A inocência é minha culpa'; 'Provoco como quem se odeia/ e não aceita divergências'. 'Quem não chegou a uma estação tarde de si/ a pressentir que o último ônibus passou?'; 'Estive à deriva, encalhado no vento'. Esse sujeito ao mesmo tempo amável e desconfortado, caseiro e inseguro, é o que entrelemos de um poema a outro e dá voz à assinatura.


O que caracteriza a poesia de Carpinejar, como a do Ferreira Gullar mais recente, é essa tradução de um estado de espírito caracterizada pela combinação de imagens concretas e pensamentos aforismáticos, pelo jogo entre ambos. É como o belo poema em que o narrador conta que dissolvia caramujos com sal (leia nesta página).


Nos três primeiros livros de Carpinejar, depois reunidos em Caixa de Sapatos (2003), essa aparentemente imensa facilidade de criar metáforas se convertia, muitas vezes, em quase hermetismo, em choque obscuro de sentidos. Aos poucos ele foi simplificando sua composição e com isso ganhando força poética; em Cinco Marias, atingiu um equilíbrio, ou melhor, uma harmonia ('Harmonia é mais penosa do que equilíbrio', diz em Como no Céu), que deu ao leitor um grupo de versos memoráveis e uma melodia geral, subjacente, como murmúrio de riacho. Em Cinco Marias visitamos toda a geografia daquela casa de mulheres.


Agora, porém, o risco é o oposto. Às vezes o poema não vai além do epigramático, principalmente em Livro de Visitas: 'Já me viste rindo nas fotografias?/ Não adianta rever./ Sou mais fotogênico na tristeza'. Ou podemos tomá-lo como argumento e discordar: 'Abandonar a si é coragem./ Abandonar ao outro é covardia' - pois não raro abandonar ao outro é também a coragem de abandonar a si. Certo, o valor emocional do conjunto é emprestado a eles na leitura seqüencial.


Mas quando se lê, sozinho na página em branco, o dístico 'O pulmão é uma tempestade/ que não aconteceu', depois de saber que o poeta tem asma e nasceu com o cordão umbilical enrolado no pescoço, aí sim a intensidade ganha o rastro de uma imagem.



É CAPAZ DE CRIAR CENAS RICAS EM OBSERVAÇÃO DO HUMANO



Nos melhores textos, vemos que não existe poeta jovem brasileiro com a mesma fusão de habilidade e originalidade, capaz de criar cenas tão ricas em observação do comportamento humano como: 'e vou abrindo com as unhas/ as tranças da chuva, as labaredas de linho,/ escoando as calhas de suas pálpebras.' Depois de duas gerações em que a poesia se ressecou na vanguarda concretista, se sujou no engajamento social ou, depois, se perdeu nos delírios 'alternativos', não pode haver melhor notícia do que essa ascensão de Carpinejar. Em sua poesia ressoam Bandeira, Drummond e o Gullar de Muitas Vozes, além da natureza de Saint-John Perse e Ted Hughes - e da cosmovisão cética de Paul Celan e Fernando Pessoa: 'Eu me consumi/ antes de ter nascido./ Não ter mistérios/ é o maior deles.' Carpinejemos.

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