quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/8/2005 06:26:03 PM

ENTRE OS MORTOS E EU

Gravura de Pablo Picasso


Fabrício Carpinejar





Se eu pudesse falar com os meus mortos, não sentiria curiosidade pelo passado e pelo futuro. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não me atreveria a esclarecer boatos. Nem aos suicidas perguntaria algo a respeito das vontades inacabadas. Se eu pudesse falar com os meus mortos, falaria do tempo, da chuva e do frio, como faria com qualquer um na rua, falaria de assuntos gerais e recentes. Não me arriscaria a criar intimidade fora das roupas. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não seria trágico, ajudaria a franja descuidada a montar nos ouvidos. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não pediria perdão. As coisas não se desculpam em trânsito. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não sofreria pena e compaixão, que os mortos já não sofrem nada, a não ser a morte que lhes foi dada. Se eu pudesse falar com os meus mortos, comentaria o jogo de futebol, o azul de um telhado, uma açucena ainda cheirando o mundo antes de vir. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não daria notícia de mim, pois contar é perder a lembrança. Se eu pudesse falar com os meus mortos, trocaria um aceno cordial com a cabeça, como a respiração sigilosa entre o cocheiro e seu cavalo. Se eu pudesse falar com os meus mortos, teria vontade de limpar a caspa de seus capotes ou alisar a chuva na lã. Um gesto intuitivo, próprio dos cuidados dos vivos, que os mortos sentem falta. Se eu pudesse falar com os meus mortos, tomaria uma café com açúcar para escutar o metal raspando o fundo da porcelana. Se eu pudesse falar com os meus mortos, mostraria as fotos 3X4 dos filhos na carteira, sei que os mortos conhecem meus filhos, devem conhecer até os netos que ainda não nasceram, mas não conhecem o jeito como os rostos são protegidos pelos dedos. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não tocaria em religião ou política, a opinião e o voto dos mortos não são obrigatórios. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não colheria a alface crespa da horta dos pecados ou uma palavra para magoar. Se eu pudesse falar com os meus mortos, mexeria no bolso conferindo a chave de casa. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não teria a angústia de nascer, de prender a atenção. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não resolveria nada, o mundo deles está cumprido, pago e não há a possibilidade de mudar sequer a gola de uma letra. Se eu pudesse falar com os meus mortos, escutaria uma música que me fosse especial, uma música sem letra para confundir. Se pudesse falar com os meus mortos, teria preguiça de acordar a língua. Se eu pudesse falar com meus mortos, não haveria pânico e medo, meus mortos não são perigosos, talvez tristes, talvez caseiros, até brincaria de fantoche com as mangas da camisa. Se eu pudesse falar com os meus mortos, lembraria de comprar pão. Se eu pudesse falar com os meus mortos, teria maior interesse em não ter interesse. Acho que os esqueceria no dia seguinte.

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