quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/10/2005 10:51:13 AM

ANA COMPLETA 36 ANOS

Gravura de Marc Chagall


Fabrício Carpinejar





O dia não é mais um desconhecido, diferente do fogo preguiçoso que só lê um lado da folha. Tua vida me cumpriu pouco a pouso. A cintura dos teus olhos é da janela que se abre ao trem, não da porta que se chaveia. Acordarás com o abrigo e a blusa branca e pequena, pegarás o café e sentarás do lado da parede. Com as costas apoiadas na parede e as pernas dobradas em repouso. O umbigo aparecerá como uma fruta encostando no telhado. Lerás o jornal como se o dia fosse um desconhecido, mas não é. Nada haverá mais de ser, Ana. Nosso filho dorme e logo chamará o teu nome antes do meu, chamará teu rosto antes do meu. Teu rosto sempre me antecede. E teu rosto são os dedos, as pernas, os cabelos, os seios, o quadril. Teu rosto é um pátio que liga a casa às outras casas. Teu rosto é a lareira de abelhas crepitando no pão. O pão como uma mesa feita somente para a boca, coberta pela toalha da respiração. Não existe cansaço, jogo. Não existe renúncia, ruas inúteis. Em tudo que vejo em ti, Ana, há uma residência por voltar. Te procuro como quem escuta um recém-nascido no pulmão. E a criança se adianta ao homem que sou para brincar contigo. Todos que fui querem brincar contigo mais do que eu. Ana, o sino deitará seu vestido pela cidade e não terminará de despir os ouvidos. O que esqueci será lembrado de outro jeito. Lembrado com outra cor. Adquirido de outra forma. Eu me desacostumei a me servir. Alfabetizado para não me alfabetizar. Importo-me somente em aumentar o corpo para te dar as mãos nervosas durante a noite. E não vacilo em pedir teu corpo emprestado para chegar ao meu corpo. Nossas mãos se assemelham às parreiras guardando a chuva. Os ramos miúdos da chuva. Os ramos que abençoam sem mudar os traços. A chuva é vinho para quem vai acompanhado. O dia não é mais um desconhecido. Cantas no carro, alto, e a estrada se volta para tua voz. E a música que nunca pensei que seria minha insiste em retornar. Ana, nossas vidas nunca mais serão duas. Esperaremos o fim das palavras para entender o começo. Nem temos horta, jardim, para ilustrar as asas dos insetos. Quando fico triste contigo, ainda sou imensamente alegre. Quando fico alegre, sou uma árvore ajoelhada. Não trocarei as lâmpadas dos ombros. Ando no escuro para tocar onde não devo. Amor é tocar onde não se deve. E curar sem entender a doença.

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