quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/12/2005 10:46:08 PM

INFANCIAMENTO

Gravura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar






A infância não volta mais. Mas quem diz que não se pode recuar até ela? Infância é como descobrir a luz pelo cheiro da grama. Devo ter sido cavalo ou boi em outra poesia. A grama do jardim de casa me contava a vida um pouquinho antes dela acontecer. A chuva tinha um odor de pente. De espuma penteada. O sol tinha cheiro de sandália nova. A neblina cheirava a pijama. O mormaço exalava o olor de joelhos. Os travesseiros conversavam na janela. A poeira saltava das fronhas e apostava corrida pela sala. Apoiava meus cotovelos no umbral e comprava fiado as ruas. Careci de futuro depois, mas nunca me faltou passado.


Eu me escondia no porão. Enxergava as pernas das pessoas chegando em casa. Não adivinhava a minha família pelos rostos, mas pelas pernas. Pernas franzinas do pai, tortas do irmão, redondas da mãe, esbeltas da irmã. Sou um perneiro. Passei a consultar o dicionário quando não precisava mais dele. Infância não é uma palavra, não é uma moléstia que se cura, é um sinal de nascença. Guardo um sinal de nascença nas minhas costas. Fico triste que sou o único que não posso me reconhecer pelo sinal. Não pude saber, a não ser pela lixa dos dedos, como é o pontinho preto, quase sarda, quase espinha. Olhava-me no espelho, esguichado, dobrado, curvo, de lado e nada. Ele está onde meus olhos não chegam. Quando morrer, não saberei se sou eu. Infância é pipoca com mel. Lamber os dedos após comer a pipoca, lamber o mel com a sujeira do pátio, dos trincos, das patas. O mel possibilitava fazer bolas com a mão. Sentávamos todos no sofá para assistir qualquer filme. O filme só durava até restar pipoca. Com o fim da diversão dos grãos, cada um seguia para o seu quarto. Não se queria ver filme, se queria ver a pipoca. Não gostava de brinquedos novos, porém de encontrar brinquedos no chão. Montar baldios, desmontar geringonças. Ao ganhar um boneco de aniversário, quebrei o braço dele assim que recebi. Meu pai me bateu: "quebraste o boneco". Argumentei que não, que não havia quebrado. Havia dividido o boneco em dois brinquedos. "Hoje vou brincar só com o braço, amanhã brinco com o resto do corpo". Meu pai não me entendeu. Criança gosta de inventar parte do brinquedo, senão os brinquedos seriam todos iguais. Criança gosta de se criar para o brinquedo. Quebra-cabeça recebia igual ternura. Se perdia uma peça, não pedia outro. Pegava um pedaço de cartolina grossa, folha branca, pintava o que faltava, cortava no encaixe preciso e pronto!. O quebra-cabeça não me fazia perder a cabeça. A criança tem mais soluções do que respostas. Os adultos têm mais respostas do que soluções.


(Fragmento do texto sobre "Infância", Palavra Toda, Sesc/Araraquara, maio/2005)

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