quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/13/2005 11:19:13 AM

PIPAS SÃO CARVÕES DAS ESTRELAS

Gravura de Portinari

Para Menalton e Roseli, meus irmãos


Fabrício Carpinejar






Cáqui é uma fruta generosa, uma fruta que já vem com prato. O dente da frente é uma colherinha de café. Raspa o chocolate da polpa. A cidade tem luz envidraçada. A luz não lambe a pele. A luz é alheia à luz. As estradas são ladeadas pelo corte da cana. A cana resiste, queimada na ponta para ceder. Até o vento é amarelo chumbo. Caminhões passam a toda hora. A colheita não pára um minuto. A fumaça sobe aflita. O orvalho e a fumaça casaram obrigados pelos pais. As calçadas miúdas põem o mundo a andar fora delas. Nos fios elétricos, centenas de pipas enroladas, pretas. As pipas são carvões das estrelas. Aquecem o céu, que endoidece de roxo e besouros. A criançada desce a ladeira depois da escola. Dispara como pneu solto. Escuta-se o barulho das mochilas contra as costas. As casas são verdes e salmão e as bicicletas, vermelhas. Em algumas portas, o cartaz: "vende-se gelinho por 15 centavos". Gelinho é um picolé de saco, sacolé. Ganha-se a vida aos trocos. Indecisos, os armazéns ficam na esquina, com portas para duas ruas. Clima seco, sem umidade, o bebedouro é um olho espiando. Dar as mãos produz choque. A sede é um bem de família. Um retrato na gaveta. Etiqueta de mala. O tempo roça à maneira de canivete, não corta como faca, não corta como punhal. Um canivete dobrado, dormido em beliche no bolso. Um canivete feito lápis, para contar as estações na aliança. As mulheres lavam a frente de suas casas de manhã. A água diz o caminho para as formigas. O guarda-chuva mudou de sexo. Usado em qualquer dia. Como proteção ao sol. Homens jogam cartas nos bancos de pedra. De pé, lançam os naipes como dados. A compaixão não ofende. Serrana me avisa que ainda não sou uma cidade extinta por dentro.


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