quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/14/2005 11:08:51 AM

DOIS AMORES AO MESMO TEMPO

Para Clarice


Fabrício Carpinejar





Uma biblioteca desarrumada não significa que é menor. Estantes com filas duplas não sinalizam desordem. Um livro que não se encontra não está perdido. Não achar alguma coisa é mexer em obras esquecidas e ler o que não se esperava. Não sou contra a catalogação. Nada disso. É que livros lidos são naturalmente livros fora de ordem. Escapam do crivo, deitam em dormitório alheio, se misturam com ansiedade. Duvido de uma biblioteca ordenada em excesso, impecável, limpa. Parece que a única leitora é a traça. A vida não deixa nada em seu lugar. Como ler sem contrariar o rumor alfabético? Como viver sem contradição? O mesmo posso pensar dos amores. Desejamos ao longo dos dias ter um casamento regulado, com todos os volumes cadastrados e que sirva mais como um móvel para decoração do que uma escada de leitura. Amor, como uma biblioteca, não é posse, mas despertence. Quanto mais leio mais perco as certezas do começo. Quanto mais amo mais apresso o final. Um livro não dirá onde estamos, uma paixão não consola, ambos apontarão para onde podemos ir dentro do corpo. É possível viver dois amores ao mesmo tempo? Sim, é possível viver até três amores ao mesmo tempo, porém o esgotamento nervoso chega junto. Desde que um amor não seja a migalha do outro. Desde que o amor não seja a falta de solidão, e sim a solidão assumida. Desde que o amor não seja a segurança do egoísmo e sim a insegurança do diálogo. Desde que um amor não seja o complemento do outro. Pois amores não se completam, se bastam. Não adianta somar duas carências para gerar uma terceira. Dois amores são possíveis no início, para se desentenderem logo em seguida. O amor que é forte, luminoso, não permite concorrência. Amor é naufrágio, nem todos encontram madeira boiando para voltar a si. Dois amores são possíveis ao mesmo tempo porque um deles será o proibido. Porém, o proibido pode ser transar com a esposa, não a amante, e quem dançará sozinha depois é a amante. Difícil de compreender? Permanecer no casamento ou na estabilidade, desde que se amem, é hoje a mais alta transgressão. Aventurar-se fora de seus domínios cheira a regra. Não existe roteiro pronto. Assim como o marido pode segurar a vela de seu enterro e as duas arranjarem coisa melhor pela frente. O amor não está em uma instituição, mas na capacidade de suplantá-la.


Amor não se mede, se confunde. É impraticável comparar relacionamentos como ofertas de lojas. Um amor que não pode ser comparado é difícil de esquecer (ainda que a separação aconteça). Aquele que já permite comparação demonstra ser pouco consistente (ainda que os dois fiquem juntos). A gente ama para quê? Para não avaliar o amor. Não conseguir acompanhá-lo é quando vai bem. Quando se começa a ter consciência do certo ou do errado é aviso prévio. Sintomático que os casais peçam conselhos aos amigos para fazer em seguida tudo diferente. Amor muda as regras de propósito, muda o telefone, muda o endereço. Quem não está jogando não entenderá. É feito somente para jogar, não ser assistido. O mistério é não entendê-lo a ponto de preveni-lo. Prevenir o amor é matar a capacidade de aprender com suas conseqüências.

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