quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/7/2005 07:15:27 PM

COMO NO CÉU LIVRO DE VISITAS COMO NO CÉU LIVRO DE VISITAS





Meu novo livro chegou nas livrarias, publicado pela Bertrand Brasil. Na verdade, são dois livros em um, duas capas, sem contracapa. De um lado, acontece "Como no céu". Do outro, "Livro de Visitas". Um mesmo casal e finais diferentes. Reproduzo abaixo as orelhas de Millôr Fernandes e Manuel da Costa Pinto, cada qual escrevendo sobre um dos volumes.


APRESENTAÇÕES



COMO NO CÉU


Millôr Fernandes


Fabrício Carpinejar tem vergonha de ser autobiográfico. À altura dos 30 e já poeta consagrado o que quer que isso seja num país de 170 milhões e num mundo de 6 bilhões de gentes ele, envolvido nos tempos da poesia que vive, claro que jamais dedicaria um verso à Carolina, aquela do leito derradeiro, dando nome do cemitério e até número da campa. Não, a primeira tarefa do seu ser poético, do Fabrício, é codificar quem é, implicitar, não explicitar. Como num haicai em que o branco se torna subitamente mais branco, o poeta japonês, tiritando de frio, pretendendo dizer, sem dizer, que o inverno chegou. Quem quiser que entenda. Eu entendi. Como?



Como, há algumas décadas (não me perguntem quantas) abri pela primeira vez o Dicionário do Diabo, do Bierce, e vi a definição de Branco - preto. Era isso, claro! Fechei o livro e fiquei matutando, como faço sempre quando leio alguma coisa que me emociona (instiga é melhor) especialmente. Foi assim quando li, num pequeno livro sobre Rabindranath Tagore: "Seu pai, o santo, viu Abdul Kan, o último dos Imperadores Mongóis, soltando pipa na muralha de sua fortaleza".


Péra aí, "seu pai" (do Rabindranath, poeta, místico, um belo gigante, dançarino, prêmio Nobel), "o Santo" (um dos milhares de santos da índia, mas ser grande mahariishi não é pouca porcaria), "viu Abdul Khan, o último dos imperadores mongóis, soltando pipa na muralha de sua fortaleza?". Péra aí, de novo, esse imperador Abdul Kahn que idade tinha? Soltando pipa (papagaio?) em que fortaleza? Durante uma semana fiquei pensando: "o que é que estou fazendo aqui, no Rio, na Gamboa?". Millôr, o mundo já foi, já era, é muito distante, no tempo e no espaço.



O mesmo sentimento me vem agora quando procuro a biografia (a vida) do Fabrício na poesia do Carpinejar. Decifro-o. De parada em parada acompanho-o quando ele (é ele quem diz, retratando-se, sem querer, livro afora, não estou inventando nada): "Voltou ao estado de contenção e apuro, antes ou depois de se revelar homem de chorar em segredo, recupera o sentido das palavras que não foram usadas, desmemoriado como um santo. E segue adiante, como um sedado que não completa seus pensamentos, terrivelmente incompetente até para a desgraça - preso à pronúncia de um país. Não define sua maneira de falecer, as fórmulas, os teoremas, os temas, infâncias terríveis, com a maldade correndo dos dois lados. Pois amor não é indigência - pela distância que sobra na cama, deitar é um ritual. Tranqüiliza e concilia as diferenças do cansaço". E é ainda ele quem me diz: "Eu sou uma cidade de baixo, ela é a cidade vista de cima, eu me vingo, ela perdoa, sem exigir nada em troca. As fotos misturadas são sinceras".



E ainda é ele e sou eu, isto é, somos, falando do poeta Fabrício Carpinejar: "Deveria ser preso por atravessar uma praça ensolarada e não sentar". Mas ele autoriza, em outra linha: "Ponha esse sol de janeiro em minha conta".


Como fiz com outros no passado, paro de ler, ao pressentir que Fabrício solta pipa (pandorga) do alto da torre da Igreja da praça florida de São Leopoldo, incentivando o sino histórico a dar, pela milésima-milésima-milésima vez, a badalada da confluência de todas as horas, lembrando que já não somos crianças, somos adultos, do tamanho de um defunto. "Um cego não anda com as mãos no bolso".


Vai. Lê ele. Devagar. Decifra-o.

E ele te devora.


LIVRO DE VISITAS


Manuel da Costa Pinto


A obra de Carpinejar vem se afirmando na cena cultural brasileira em razão de um valor cada vez mais raro na literatura em geral e na poesia em particular: a experiência - entendida aqui como matéria bruta que a escrita poética transfigura, sem todavia esquecer aquilo que pôs em movimento a "máquina de trovar" (segundo expressão de António Machado).


Ao mesmo tempo, esse registro lírico dramatiza com angústia - mas também com boa dose de ironia - a impossibilidade da vivência, traduzindo assim nossa época de massacre da subjetividade.


Dois eixos percorrem esse Livro de Visitas. De um lado, a dicotomia entre público e privado, anunciada já na epígrafe: "A rua é tão-somente uma casa destelhada". De outro, uma tentativa de preservação da memória pessoal que vai sendo corroída por um estranhamento inoculado naquilo que é mais familiar (e que é um estranhamento de si mesmo).


Em ambos os casos, trata-se de cancelar essas oposições, fazendo-nos sentir que tanto os espaços externos (ruas habitadas pelo grito dos feirantes; pomares da infância com varais ondulantes) quanto os laços de sangue (com suas recordações escolares e seus álbuns de retrato) só existem como nostalgia de uma comunhão cuja impossibilidade a literatura vem redimir.


Carpinejar adota às vezes um olhar contemplativo que recolhe "as roupas do quarto com a nudez morna, esquecida de seus transtornos". Mas, por trás desses vestígios cotidianos, há sempre um desastre à espreita - que esse poeta avesso a convulsões formais enuncia de modo pacífico, com uma discrição que retira de cada momento uma sentença iluminadora.


"O que é visível já não é meu"; "quando estamos próximos de dizer é que não estamos mais aqui" - escreve Carpinejar em poemas nos quais a forma epigramática resume a situação de quem visita uma realidade cujas promessas de conciliação e hospitalidade sobrevivem apenas pelas palavras.

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