quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/28/2004 01:37:38 PM

"POESIA É NUNCA SE ALFABETIZAR"





Entrevista com Fabrício Carpinejar

Arte digital Renata Stoduto

Por Wanderson Lima, na revista AMÁLGAMA


Durante alguns meses, troquei com Fabrício Carpinejar alguns e-mails em que discutimos a poesia alheia e, às vezes, a nossa (a minha e a dele). Surpreendi-me como, em seus breves e-mails, Carpinejar conseguia ser a um só tempo crítico e poético. A essa época, já havia lido a histórica entrevista que o autor de As Solas do Sol (1998) havia concedido, na revista eletrônica Agulha, ao crítico e poeta Floriano Martins e senti que valeria a pena fazer-lhe outras perguntas, quiçá completares às indagações argutíssimas de Floriano.


Ernesto Sábato, em um de seus ensaios, diz que em nossa época um escritor que queira se passar por profundo deve ser obscuro, pois temos associado clareza à superficialidade. Esse comentário de Sábato parece ter a ver com uma linha de nossa poesia que engloba Bandeira, Quintana, Manoel de Barros e você, verdadeiras vítimas desse julgamento equivocado, patrocinado principalmente por certos vanguardismos formalistas afeitos a experimentações herméticas as quais só é possível a compreensão se estivermos por dentro de seus pressupostos teóricos. O que pensa sobre isso?

Carpinejar: Eu penso que o poeta não deve ir ao fundo da linguagem, mas permanecer em vigília na superfície. A superfície é densa e expressiva, onde o mundo nos assiste. O que me importa é o cheiro da rua, da casa, das roupas, remexer no desperdício. Estar tão próximo do leitor que ele me sinta longe. O fundo é isolamento e nos afasta da vulnerabilidade. Desde criança, tenho uma empatia pela fraqueza. Sempre tentei amparar quem estava desfocado, deslocado, às margens. Minha linguagem é um esforço de diplomacia entre a imaginação e a realidade, entre os que as pessoas pensam e o que elas são. Criou-se uma crença de que a boa poesia é aquela que não é compreendida. Quanto mais difícil, melhor a criação. Não concordo. A poesia precisa falar para todos os tempos em qualquer tempo. O tempo tem que estar vivo no verso. O que adianta dizer para não dizer? O que adianta apenas preencher um lugar na estante? O que adianta escrever para si? Melhor então é nunca publicar. Escrevo como doação, buscando transferir meu sangue. Minha única vanguarda é acompanhar minha morte a distância. Deixar que ela se aproxime. Enquanto isso, vou fazer da vida a minha mais alta despedida. O verdadeiro poeta não precisa de um prefácio para ser entendido. A sensibilidade tem urgência e não fica esperando pressupostos teóricos.


Mário Faustino, quando de sua página no JB, reclamou certo vez que o Brasil estava cheio de 'Drummondzinhos'. Talvez hoje ele dissesse que está cheio de 'Cabralzinhos'...

Carpinejar: Mario Faustino era um leão (crítico) com coração de ave (poeta). Acredito que Cabral teve muitos imitadores em vida. Mas é impossível imitar Cabral, o autor brasileiro com o melhor sistema anti-vírus. Houve até quem conseguisse cotejá-lo na forma, mas sem nunca atingir sua implacável visão de mundo. Imitar Cabral é tentar ser gago. Tudo não passará de uma caricatura. A poesia brasileira contemporânea está se libertando dos referenciais da última metade do século XX. Mais solta, convicta, menos experimental, capaz de inaugurar sua fome sem precisar recorrer à metalinguagem. Vários autores começam a aparecer com intensidade, não transformando seus livros em teses acadêmicas e procurando sentir o peso das contradições e paradoxos de nossa época.


O crítico Hidelbrando Barbosa Filho afirma com lucidez: "Poeta que pensa, Carpinejar, no entanto, não busca seu pensamento fora de sua vivência pessoal. À semelhança de Rainer Maria Rilke, nas Elegias de Duíno, sua convocação metafísica nasce do pacto com a vida, do olhar sobre as coisas, do olhar por dentro das coisas, e não exteriormente das doutrinas filosóficas que aí circulam." Você concorda com os que afirmam que os poetas romperam 'o pacto com a vida' e passaram a produzir uma poesia muito literalizada e auto-referente?

Carpinejar: Concordo. Centenas de poetas passaram a problematizar o poema, com medo da influência de Cabral, Bandeira e Drummond. A poesia virou um divã, uma terapia. Ao invés de propor um pacto com a vida, regurgitava a impossibilidade de se fazer um poema. Basta pegar aleatoriamente qualquer iniciante das últimas décadas, sempre existirá um verso pedindo desculpas por não conseguir vencer a insônia. Há gente que ficou cega com a página em branco. Daí que os leitores se afastaram dos poemas pela ausência de identificação e foram encontrar ressonância biográfica nas letras da MPB e do rock. Agora o poema voltou a ser música, sentido e olhar demorado sobre as coisas. Retoma-se os grandes temas a partir das pequenas delicadezas e irrupções do cotidiano.


O cânone literário brasileiro precisa ser reavaliado?

Carpinejar: Sim. É um crime deixar de fora do cânone Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima e toda uma poesia filosófica e mística. A crítica tentou dilapidar nossa herança barroca e visionária. A necessidade de engajamento nos anos 70 e 80 criou uma obrigação aos poetas de transformar o mundo. O que parecia mais subterrâneo e religioso, ficou de lado. Uma tônica realista e ateísta impregnou o cânone brasileiro, dificultando o acesso a alguns importantes precursores de nossa brasilidade. O lirismo acabou deslizando para os epigramas, ao humor, aos trocadilhos, aos haicais preguiçosos e aos anúncios publicitários. Do protesto, a poesia virou brincadeira.


Borges parece ter sido muito importante em sua formação, como transparece especialmente em seus dois últimos livros...

Carpinejar: Ainda é importante. O que mais gosto dele é a espessura do pensamento. Ninguém lê Borges sem mudar o tom de voz. Ele exige uma projeção fônica de fábula, de vatícinio e história. Borges controlava a paixão durante a formulação poética para que ela despontasse somente na leitura, na oralidade. Ele acreditava que a grande magia estava em reunir novamente a narração e o poema, dizia que os leitores estavam sedentos pela épica. Nesse sentido, meus livros formam um romance versificado, um desdobramento de um enredo, feito pela velocidade das metáforas.


O diálogo com Manoel de Barros em seu último livro, Biografia de uma Árvore, é notório e foi ressaltado por críticos como Miguel Sanches Neto. Até que ponto esse diálogo foi relevante? Qual a importância, para nossa literatura, da produção literária de Manoel de Barros?

Carpinejar: Um poeta precisa ser influenciado principalmente pelos seus defeitos. Isso é estilo. Sou também influenciado por aquilo que não foi escrito. Manoel de Barros é um grande escritor, peculiar, explorando os desvios da língua já anunciados por Raul Bopp e Guimarães Rosa. Faz a catequese do traste, a pedagogia do ínfimo. Defende uma teologia do abandono, pós-industrial. Sua estética simula o nível da criança enquanto está aprendendo. Recupera a primeira dentição da linguagem. Realiza uma poética da fé, religiosa, que reivindica a crença de que todos partilham das mesmas convicções. Barros infantilizou a forma poética, não se restringindo a tematizá-la. Propõe que o objeto seja de todos não sendo de ninguém. Minha poesia é mais desconfiada, cínica, não quer o deslumbramento, mas o assombro, algo entre a alegria e a dor. Quero misturar os sentimentos: chorar rindo e rir chorando. Não falo como uma criança, porém percorro as diferentes idades do homem em um mesmo livro.


Há uma forte unidade em sua obra, não só entre os poemas de um mesmo livro mas entre um livro e outro. Parece-me, porém, que seu primeiro livro, o surpreendente As Solas do Sol, foge dessa unidade, é uma experiência a parte...

Carpinejar: Apronto os livros simultaneamente. Não é um processo estanque, individualizado. Desdobro pensamentos em uma única matriz. Meu núcleo é a família e suas relações de poder e despoder, influência e desatino. São manuscritos emendados, embaralhados na escrivaninha, manchados pela luz líquida. Em As Solas do Sol, existe metáforas fechadas que aos poucos foram se abrindo nas demais obras. É um livro à parte, mas com extrema significação no todo. Fui raspando minha estréia, retirando o que tentava me esconder, desvelando o que ainda não estava suficientemente formulado. O personagem de As Solas do Sol, Avalor, pode ser o mesmo de Um terno de pássaros ao sul, Terceira Sede e Biografia de uma árvore. Uma espécie de Jó sem fé. Ficou três vezes viúvo: da esposa, dos amigos e de seu tempo. É o último da fila. Busca um lugar seguro para guardar sua memória. Está procurando até hoje.


Em "Um Terno de Pássaro ao Sul", você conseguiu realizar um mea culpa sem se deixar contaminar pelo pathos romântico, o que é realmente admirável. Foi o livro mais difícil de ser escrito?

Carpinejar: Um terno de pássaros ao sul foi o livro mais difícil, pois o considero um divisor de águas da minha literatura O trunfo dele consiste em não ser derrotista. É muito fácil cativar pela dor, viciar-se na depressão, exaltar o sofrimento. O romantismo se espalha pior do que a gripe. O difícil - e estimulante - é superar as adversidades e cantar a alegria que pode existir no mais banal. No início, o filho pretende condenar o pai pródigo. Entretanto, descobre que está assim se condenando. A amizade se fortalece pela compreensão. Compreender é perdoar de certo modo. Eu corria o risco de ser confessional. Armei-me, portanto, da ironia, conciliando o apelo dramático com a autocrítica. O que proponho são 'conficções', confissões inventadas. Sou um perfeccionista pelas imperfeições. Quero mudar o senso comum de lugar. Procuro o avesso e a inversão, corromper as certezas. Fazer com que a palavra não morra no costume. Quem pensa que a vida está ganha, não está. Quem pensa que está perdida, também não está. Literatura é indefinição, tensão, desejo, estar na contracorrente do óbvio, caminhar do fim ao início. Poesia é nunca se alfabetizar. Renuncio à erudição para desaprender e perceber cada pessoa como um novo dialeto. Renuncio ao conhecimento para me desconhecer. Quero desescrever cada vez mais, desaparecer para que quem está lendo se enxergue. Que ninguém repare que a poesia foi escrita. Meu nome não é um endereço. O autor precisa se ausentar do livro para se fazer presente por inteiro. O crítico Maurício Melo Júnior. talvez tenha descoberto o grande duelo em minha obra: "do anônimo com o inonimável".


Em um artigo seu, Antecedentes Criminais Poéticos, você tece importantes reflexões a respeito do desinteresse do jovem pela poesia. Por que o jovem ler tão pouco textos poéticos? Que parte da culpa cabe à escola?

Carpinejar: A poesia não é posta na escola como criação, porém apenas como leitura e catalogação de gêneros e escolas. Persiste uma interpretação mórbida da vida do autor em detrimento da obra. Sabe-se mais das doenças de Castro Alves do que de suas odes. Esse é o grande erro. É impraticável criar um laço com aquilo que não é exercitado. Ninguém nasce tocando violão. O jovem tem uma vocação natural à poesia, procurando se expressar por diários, cartas e agendas antes de qualquer outro gênero. Infelizmente, não recebe o incentivo, o exercício da sensibilidade, a intimidade do convívio, que insira o verso como algo espontâneo, real, funcional e vivo. O sistema educacional brasileiro trata a poesia como um luxo ou um acessório. Pela desinformação, ela termina sendo sinônimo de tumba formal ou de derramamento, catarse e atentado emocional ao pudor. Poesia é o contrário: contenção e ritmo, idéias e música, relâmpago da voz.

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