quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/30/2006 12:50:37 PM

Estado de São Paulo, CADERNO 2, Domingo (30/4/2006)



DUELO DE UM HOMEM COM SEU MEDO

Em Mãos de Cavalo, Daniel Galera cria uma narração vertiginosa e incisiva sobre as omissões irrecuperáveis do passado


Fabrício Carpinejar





Um escritor amadurece quando supera o seu próprio ponto de vista. Quando não empresta mais suas manias, virtudes e defeitos aos personagens. Quando abre outra vertente que não parta do molde inerte de sua experiência. Mãos de Cavalo, de Daniel Galera, transcende os trejeitos psicológicos e referências possíveis do autor. Tão jovem, com 26 anos, e tão maduro. É um salto, nem diria um passo, se comparado aos seus livros anteriores, os contos de Dentes Guardados (2001) e a novela Até um Dia em Que o Cão Morreu (2003), já que ambos denunciavam um parentesco com a atmosfera de sua formação.


Mãos de Cavalo, a primeira incursão de Galera na editora Companhia das Letras, abrange o fluxo de consciência de um profissional que rememora eternamente as possibilidades de uma outra vida que não assumiu. É a biografia do "quase", de um sujeito feito de obsessões irresolutas, coragem atrasada e culpa retrospectiva.


Galera apanha a realidade de modo microscópico, prendendo o tempo de cada descrição, não como uma lupa a ampliar o foco, mas com uma lupa a queimar o que cobre. Quanto mais aproxima a lente das coisas, quanto mais nomeia de modo minucioso e simultâneo, mais asfixiante e obnubilada é a visão do conjunto. O realismo integral dá curiosamente ao livro a idéia de alucinação.


Divide uma única história, a de Hermano, em infância, adolescência e período adulto. A diferença é que fala de um único homem em relatos independentes, macrocontos que conversam entre si, trocam informações, mas mantêm autonomias estilísticas até o fim. No princípio, a sensação é que são três personagens, nunca um só.


As faixas narrativas são marchas avançadas de uma bicicleta, pontualmente intercaladas como subidas e descidas, ganhando velocidade a partir de pequenas escolhas do protagonista. A versão da criança disposta a cair de sua Caloi Cross Aro 20 vai sendo engolida pelo convívio do adolescente com a turma do bairro, enquanto acompanha-se o deslocamento do adulto, médico consagrado e insatisfeito com o casamento, à residência de um amigo para realizar viagem de escalada ao Cerro Bonete, na Bolívia. Cada etapa do crescimento apresenta um ato decisivo de enfrentamento da identidade, de assumir ou não os riscos. Em hábil trama, a ecoar tensão emocional com frases curtas, incisivas e pouco adjetivadas, produzindo reverberações infinitas de uma mesma matriz, Galera monta o duelo de um homem com seu medo. É o medo que favorece as construções prismáticas, fazendo com que a obra avance à medida que se voltam páginas. A obra, na verdade, acontece recuando.


Fica-se entre o que deveria ter acontecido e o que realmente aconteceu. Para a memória, as escolhas nunca foram feitas e permanecem abertas. Hermano convive com vários Hermanos, sempre iguais e insatisfeitos. Enxerga-se duplamente, pelas suas fantasias heróicas e pelas suas vacilações inibidas. Desde o princípio, deseja testar seus limites. No princípio, busca a queda na bicicleta e nas corridas, para provocar contusões, dor e resignação. "Estava pronto para sangrar. Era seu talento."


Numa das cenas mais lancinantes e particulares, finca sucessivamente dezenas de lápis de cor no rosto, deslizando da maquiagem à agressão. Sente a ânsia de ser outro, ainda que a custo da mutilações. Sua biografia se torna uma constante de fugas. Repete incessantemente uma hesitação primária e cordata, ao não enfrentar a briga no futebol, ao não interromper assédio sofrido por amiga na festa, ao assistir omisso a morte de colega, ao não levar a cabo sua primeira transa.


Quem é Hermano, senão tudo o que deixou de fazer? Não porque quis, é isso que Galera mostra, negando o maniqueísmo. Simplesmente porque não estava preparado ou porque a realidade ocorreu violentamente quando ele menos esperava. O sofrimento vem em dobro, pois ele tenta de todas as formas dominar a consciência de seus atos. Os fracassos são intensificados por vir de uma personalidade precavida, que costuma observar seu bairro com o dom de uma câmera sempre ligada. "Às vezes a câmera surgia nos instantes cruciais de sua existência, às vezes captava a realidade de momentos banais e solitários (...) Não era simplesmente sentir-se observado, imaginar testemunhas indefinidas para cenas da vida. Era como se ele mesmo se destacasse do corpo para se tornar o observador."


O primeiro lugar no vestibular em Medicina depois, o estudo encarnado, a opção por uma carreira de sucesso, como a de cirurgião plástico, formam atenuantes aos recalques, não representam uma vingança.


O ficcionista prova que a adolescência é tudo, menos um rito de passagem. Dificilmente alguém chega realmente a atravessá-la. Hermano (seu apelido, Mãos de Cavalo, dá o título ao volume) expõe-se à crueldade masoquista para aliviar-se de sua impotência diante do sadismo da convivência.


Seja ao narrar um parto, seja ao mostrar a brincadeira paterna de estátua à filha, Daniel Galera sobra em veracidade e persuasão, com uma observação inusitada a refrescar trivialidades. A narração é puro pensamento quando se detém à ação. Entende-se a cumplicidade que pede as drogas, por exemplo, quando Bolita decide fumar maconha e tomar chá alucinógeno sozinho em acampamento no morro. Ele percebe que não tem como definir se fez efeito ou não, já que não tem ninguém ao seu lado para dizer que saiu do normal. Entende-se como escaladas podem servir à vaidade, não ao autoconhecimento, no momento em que Hermano desvenda as pretensões de um amigo interessado com a publicidade pessoal da aventura. "Não é a força ou a impulsividade que faz alguém subir uma rocha, é uma sabedoria muito mais delicada, uma complexa economia do esforço muscular e do equilíbrio, um balé de contrações e descansos regidos por uma mente concentrada e desligada de tudo que não seja corpo e pedra."


Daniel Galera, que ficou conhecido como um dos principais expoentes da internet, que criou a editora alternativa Livros do Mal, que tem seu primeiro livro editado na Itália e seu segundo livro sendo adaptado ao cinema por Beto Brant, borrou seu nome definitivamente no asfalto. Será possível lê-lo com legibilidade daqui a décadas. Porto Alegre está inteira em Mãos de Cavalo, na caracterização apropriada da linguagem, carregada da segunda pessoa do singular e interjeições, ou no traçado falhado das ruas, assim como já acontecia com o premiado Os Lados do Círculo (2004), de Amilcar Bettega. Um tratado geral e impecável sobre remorso está igualmente fundamentado no romance, assim como se via em Longe da Água (2004), de Michel Laub. Aliás, três gaúchos que cresceram com garra, técnica e disciplina, hoje publicam pela mesma editora e partilham irmanamente a posteridade da nova geração.


Fabrício Carpinejar é jornalista e escritor, autor de O Amor Esquece de Começar (Bertrand Brasil, 2006)

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