quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/23/2005 10:10:41 AM

JORNAL ZERO HORA, CADERNO CULTURA

Porto Alegre (RS), 23/5/2005, Edição nº 14487
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VOZ ALINHADA AO TAPETE DE ASTROS


O compositor, músico e escritor Vitor Ramil concede uma entrevista antes do show de lançamento do CD Longes em São Leopoldo. Enquanto conversa, alisa os frisos do palco à procura de linhas harmônicas e de uma ordem íntima que só ele enxerga. Sem o público e diante de si, é um menino de olhos grandes, ainda assustado com o tamanho da vida. Nem os cabelos levemente brancos o envelhecem. Evoca sua infância e as relações familiares, comenta o livro que está escrevendo e explica seu temperamento recolhido e caseiro, demorado no silêncio e nos detalhes.


FABRÍCIO CARPINEJAR*

Fotografia de Renata Stoduto




"Quando criança, tentaram me levar para uma colônia de férias. Eu me agarrei no portão e não entrei de jeito nenhum. De certa forma, continuo agarrado ao portão"


Qual a palavra que a infância roubou?

Não sei.


O que você mudaria em sua infância?

Minha infância é meio misteriosa para mim, talvez tenha tanta coisa para mudar que eu não consigo nomear ou talvez não tenha que mudar nada.


Sua infância é o esforço de nomear?

De alguma forma, acho que sim. Passei minha infância tentando nomear coisas. O que faço hoje em dia é resultado disso. Estou escrevendo um texto hoje que é a repetição de mim mesmo. História de um sujeito cuja vida foi um esforço para compreender e explicar racionalmente sua subjetividade. Isso de alguma forma comprometeu seu capital de imaginação, o atrapalhou, o bloqueou. Tive um pai que era de verdades absolutas e julgamentos definitivos. Não posso dizer que minha imaginação se perdeu na infância, porque sempre vivi graças a ela. Mas muito de meu esforço de renomear vem desse período.


Na sua permanente invenção, tem a necessidade de corrigir sua vida?

Toda correção me aproxima do que fui.


Há um Vitor real, fora do espelho?

Não existe um real, mas um Vitor aproximado, a gente muda permanentemente. Somos feitos de instantes compridos. Não sei se estou me dirigindo a quem eu era, se estou me tornando quem eu era ou apenas reagindo a isso.


E a figura materna em sua formação?

Engraçado é que escrevi Pequod sobre o pai do personagem e o que estou escrevendo agora tem na mãe uma figura de destaque. Minha mãe era uma figura muito diferente da do pai. Se o pai era quieto, a mãe tocava a vida diária e fazia a ponte entre os filhos. Os anos me fizeram repensar e tento me ver como eles me enxergavam. O adulto é mais complexo. Quando criança, tudo acontecia direto, com demandas imediatas. Quando adulto, a gente mede as experiências, faz projeções e inversões.


Sua mãe fazia seu pai existir?

Eles se completavam. A vida não ocorre gratuitamente.


Enfrentou dificuldades de adaptação?

Tenho uma tendência ao isolamento. Quando criança, tentaram me levar para uma colônia de férias. Eu me agarrei no portão e não entrei de jeito nenhum. De certa forma, continuo agarrado ao portão.


Reza?

Rezo às vezes. Posso rezar meditando ou rezar com o que aprendi na Igreja Católica. Tanto num momento de desamparo e angústia como num de bem estar.


O que o agride, quando quer ficar só?

Não entendo o motivo, mas busco sempre ficar com pessoas que já conheço, com pessoas de minha casa. É um dos meus dilemas na carreira de músico e cantor, deveria estar mais disposto, mais presente, estabelecer mais relações pessoais. Sou muito apegado aos hábitos. Tanto que voltei para a casa em Pelotas, onde vivi minha infância. Recuperei a casa antiga em um trabalho de reconstrução de mim mesmo. Vivo um processo investigativo por retomar a minha origem. Escrevo para só depois perceber. Como em meu livro inédito, que o personagem volta à terra natal aos 30 anos, que foi justamente o que fiz. Aparece Simões Lopes Neto, que diz ao protagonista: "Eu me sentia mais um inadaptado do que um artista". O personagem se vê como um inadaptado e volta para procurar entender as lacunas de sua vida. Na infância ele brincava de tapar um dos olhos e assim alterar o campo de visão, criando zonas de sombra. Na idade adulta as zonas de sombra reaparecem pedindo luz. Quando vou escrever é que recebo notícias de mim.


Há uma inclinação para tristeza?

Sim, embora não saiba explicar. Mas faço muito as pessoas rirem. Tenho dois extremos. Como ouvi alguém dizer uma vez, o que resta a um filho caçula é fazer a família rir. Eu aprontava macaquices para a avó, tecia comentários engraçados. Posso ser uma companhia muito divertida; por outro lado, parece, em alguns momentos, que a tristeza nunca vai se afastar de mim.


Fazer rir não significa que está alegre. Se acha engraçado?

Não, não consigo rir de mim.


Passa a sensação que está com a cabeça sempre em outro lugar?

Sou desligado. Tudo se desloca para outro lugar.


E não toma carona de volta?

A verdade é essa: vou longe e não é possível voltar rápido.


Qual o som que lhe conforta?

As Variações Goldberg, de Bach, por exemplo. Mas sou capaz de me satisfazer durante anos com um disco só, me satisfaço com pouco. Pego um livro para ler, leio parte dele, e me dou por satisfeito. Às vezes, não vou ao final. Pode me disparar para a criação e esqueço dele e retomo a leitura um ou dois anos depois. Vivi inúmeras leituras interrompidas, discos interrompidos pela metade. Não tenho apego excessivo por nada. O Kurt Vonnegut conta num livro que gostava de rolar com seu cachorro no tapete; que o cachorro se desinteressava logo, enquanto ele poderia rolar ali para o resto da vida. Eu me identifico com o cachorro. Não há chance de ser um sujeito viciado em drogas - não me apego a nada. Eu me vejo flanando.


E o som do mundo, qual é o preferido?

Moro em uma casa antiga com diversos sons que me acompanham. Gosto deles. São um mundo: som da madeira, das tábuas corridas; som das portas batendo com vento, a maioria está sem trinco e não quero perfurá-las; som de gato no forro; tem dias que gosto das goteiras (são insolúveis em minha residência), tem dias que eu as odeio (mandei arrumar mil vezes e nunca fica bom). Casa antiga exige dedicação. Raspar as madeiras e a história com cuidado. Existe uma mania e cultura de amar as coisas novas e destruir as velhas. Eu amo as velhas Se tu estás em um lugar sólido, com passado, te sentes parte de um processo e andando para frente. Em casas novas olho para trás e não tenho nada, a impressão é que começarei do zero. Sou fiel às amizades antigas.


Quando compõe uma letra e não consegue concluir? Tem dó, guarda ou rasga?

Agora eu espero pelas letras sempre. Antes fazia música e letra ao mesmo tempo. Elaboro uma música e deixo de lado até que um dia a letra se impõe. Já aconteceu de eu esquecer a melodia de tanto que a letra demorou.


Está cada vez mais difícil sua relação com a linguagem?

Não, cada vez mais fácil. Vem com naturalidade quando escrevo literatura. Letras de música, nem tanto. Meu último disco, Longes, é mais sólido no tema e tratamento, mais consistente do que os outros, que reuniam canções de uma sentada. A música Perdão, por exemplo, inspirada a partir de Bach, demorou um tempo para vir a letra. Até surgir a idéia de pedir perdão às coisas que te fazem bem, criando um paradoxo. Pedir perdão ao contrário, invertendo a máxima franciscana. É o tipo de letra que não me surge rapidamente.


Para quem pediria perdão?

Eu pediria perdão a mim mesmo quando criança. Apesar de toda a minha capacidade imaginativa quando pequeno, poderia ter rendido mais na minha vida criativa se não tivesse perseguido tanto a racionalidade. Eu me questiono volta e meia. Vivo disso desde sempre, componho praticamente desde criança, e ainda me pergunto: será que não estou equivocado?


Nunca ficará satisfeito?

Não, porém gostaria. No sentido de ter paz. Eu invejo a imagem de Picasso e sua facilidade criativa, ser criativo em tempo integral, com um desimpedimento total. Só que os caminhos são tortuosos. Um longo corredor que é necessário vencer. Não paro porque é a única forma de me relacionar com o mundo, rebatizar o mundo. É minha conexão com as coisas e as pessoas.


Não é exigência excessiva?

Sou o sexto filho de uma família onde todo mundo tocava e era criativo. Não posso dizer que ninguém reparava em mim nessa época.. Mas talvez eu tenha tido que imprimir um tremendo esforço para ser notado e isso tenha se estendido para toda a vida.


Diante de sua discrição e introversão, identifico sua constante vontade de desaparecer?

É um fato contraditório a um artista.


Realiza um movimento contrário a sua infância. Se tivesse condições do violão representá-lo em cena, seria ótimo?

Se pudesse, nem o violão viria. E é ruim para shows, apresentações e produção, e isso que estou bem mais social do que antes. Ser social não é natural para mim. Eu me desinteresso rapidamente. Em uma conversa, me ocupo dos detalhes. Não consigo ir às festas e conversar amenidades. Receber prêmio em algum lugar acontece abaixo de empurrão.


Essa profundidade não o deixa tonto, sobrecarregado?

Às vezes. Talvez seja um desperdício produzir com intensidade e fazer tão pouco para que o público entre em contato comigo.


Mesmo mudando, continua sempre o mesmo?

Posso mudar muito, de estilo, de roupa, de disco, mas estarei sempre sendo eu. Se tenho um modelo para isso é o Miles Davis, que foi um cara diferente em cada época. Em sua trajetória, ele sempre se desvencilhou de uma linguagem e partiu para uma nova, arriscando-se sempre. Explicou-se numa confissão pro Wayne Shorter: "Sabe por que não toco mais baladas? Porque eu amo tocar baladas".


Mostra seu livro antes de publicado?

Sim, não guardo segredo, mostro aos amigos, tenho curiosidade em saber o que os outros pensam. Um olhar de fora me parece necessário.


O que irrita em teu comportamento?

Vagueza. Muitas vezes não ouço o que me dizem na primeira e na segunda tentativa. Em casa falam comigo, não ouvi nada, e daí digo: "O que foi?". Sou abstrato.


Disfarça?

Com estranhos, disfarço. Tenho uma memória ruim: esqueço facilmente. No geral, apago rostos, nomes, citações, minhas letras.


Todo escritor tem suas obsessões, existe o receio de se repetir?

Parafraseando a Marguerite Yourcenar, entro numa floresta escura ao escrever. Entendo o que meus personagens querem depois deles. Faz 10 anos que escrevi Pequod. Em música, faço um disco de quatro em quatro anos. Tenho que me apressar, faço 43 anos este mês, e daqui a dez terei somente dois discos a mais. Teria que mudar o ritmo, mas talvez não deva forçar a barra. Sou lento no todo, embora no dia-a-dia apresente uma velocidade louca. Eu prezo a lentidão.


Imagina chegar à velhice?

Eu idealizava entrar no palco com 90 anos e tocar, como um Compay Segundo. Mas ultimamente isso me parece inviável. Pela primeira vez, sinto que a música não me motivará por muito tempo. Nada no mundo me motiva o suficiente. Mas atenção: essa declaração não deve ser levada muito a sério. É quase habitual que eu desista e volte rapidamente. Li meu inédito em outro dia e decidi que não escreveria mais. Então, como que desafiado por mim mesmo, reli, reescrevi e retomei o trabalho cheio de entusiasmo.


É detalhista?

Estou sempre ajustando, arrumando. É a minha doença de menino. Quando estava na sala da infância, alinhava o tapete de acordo com as tábuas. Organizava a sala por horas. Olhava alguma poltrona e mudava constantemente sua posição para encontrar a ideal. Essa intuição é tão exercitada em mim que não torna meu texto cerebral, é uma disciplina poética de filtrar e organizar já devidamente incorporada e transcendida. Eu libero a imaginação para depois organizar o caos.


O que é mais difícil: desafiar sua voz ou seu silêncio?

Não sei.


* Fabrício Carpinejar é jornalista e poeta, autor de Cinco Marias, entre outros livros.

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